Não me basta este jacarandá”
Excerto de Amo-te, Adília Lopes

Há perguntas que só se respondem em ação e mesmo assim sobra o mistério. Por mais que se olhe, que se pense ou faça, nenhuma resposta satisfaz a não ser o Homem diante da impenetrabilidade do mistério.

Recentemente, numa conferência a anunciar o fim da sua carreira, Serena Williams, tenista multipremiada, respondia embaraçada – como nunca se havia sentido, nem na partida mais competitiva e complicada – a uma pergunta sobre o sentimento de chegar ao fim daquela que, julgávamos todos, era a sua vocação. Sentada tumultuosamente na cadeira, num discurso breve e belíssimo, principalmente por causa do que não disse, palavras aos solavancos, dignas e apropriadas como liberdade, fugiam-lhe da boca imparáveis, sem nunca conseguir descrever ou explicar integralmente a sensação de “estar num túnel a aproximar-se de uma luz”.

É curioso que Williams respondeu sempre em campo, sem precisar de mais nada. Toda a sua vida, desde muito pequena, foi concebida a correr de um lado ao outro do court, tentando responder, com sucesso, ao sentido da sua vida, como qualquer atleta genial. Ganhava um jogo e o próximo lhe bastava, o próximo satisfazia um qualquer desejo, e assim sucessivamente. O próximo torneio, o próximo jogo, a reação à derrota, a continuidade nas vitórias, a partida que justificava o treino, era um ciclo fechado e abundante que nunca, até hoje, se tinha revelado insuficiente. Tudo culminava com uma raquete na mão. O jogo seguinte parecia corresponder à totalidade do propósito, parecia ser como um pano quente sobre as angústias, inquietações e demandas. Mas agora, na presença de um silêncio, no culminar de uma carreira que, repito, era o lugar que parecia justificar plenamente a sua existência, o que lhe resta neste fim aparente, com a raquete guardada, na presença de um novo início? O que lhe resta, agora que acabou, se nada do que fez foi em vão?

Por mais que tente, como aconteceu na conferência de imprensa, todo o suor que alastrou pelo mundo afora é sinal de que há qualquer coisa grande, inexplicável – porque o nosso coração é feito para coisas plenas de bem, verdade, justiça e liberdade – que não se esgota num court de ténis.

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E se assim é, por onde se esconde agora a completude de uma vida que se pede “renovada”?

Na conferência de imprensa, ao contrário da carreira que fez como profissional de ténis, onde, como disse, “tentou dar o seu melhor”, houve pequenos momentos de incerteza, pequenos interstícios que o top spin ou o talento para executar um ace não resolveram.

Sem percebermos como, porque também nós não sabemos explicar muito bem que luz é esta de que Williams nos fala, ao longo do caminho, olhando para figuras como ela, parece que as coisas estão certas e que as dúvidas ganham sentido.

O mesmo acontece com Roger Federer, que na semana passada anunciou o final de uma carreira extraordinária. O tenista suíço é, como Williams, um paradigma nas nossas respostas, nesta árdua tentativa de reagirmos às perguntas maiores, de tentarmos desvendar o que vai dentro do coração do Ser Humano, de tentarmos entender para que é que somos feitos.

Sem percebermos necessariamente porquê, constatamos que o rasto destes homens e destas mulheres faz sentido, está ajustado à realidade, é livre e belo, e, por isso, deixa o mundo melhor, serve como resposta mais aproximada daquela que queremos mesmo dar. Williams e Federer guiam-nos na medida em que, aos seus ombros, encontramos caminho novo.

O legado íntegro e admirável que sobra das suas carreiras, cuja dimensão os transcende tal como os momentos em que deixaram de ser os melhores, e que oferecem como herança aos seus colegas, adversários, às crianças de olhos arregaladas por os ver, sobrevive nas nossas memórias como possível veículo para que, da próxima vez que nos perguntarem qual o sentido da vida, apontemos, curvados, humildes e em silêncio, para eles. Williams e Federer, ainda que não consigam contar por palavras, foram-se fazendo estreitas mas vultosas migalhas da metafísica, da procura constante que o Homem faz sobre si mesmo.

Num mês em que o futebol português ficou novamente marcado por casos deprimentes que o amiúdam e, acima de tudo, que transformam os valorosos efeitos do desporto em meras ilusões, emergem como pressurosos e vitais os exemplos de Williams ou de Federer, para que se torne evidente o verdadeiro, singular e mais importante sentido do desporto: uma tentativa nobre e humana de dar resposta às grandes inquietações que temos.