O fenómeno e o impacto social, económico e moral da propagação da infecção pelo coronavírus tem-se se mostrado absolutamente devastador para o nosso planeta. É curioso reparar que este simples acontecimento – e o termo simples diz respeito ao facto do vírus se assemelhar a uma normal gripe – deita por terra uma das mais recentes e populares teorias sobre o poder dos homens na terra. Falo da tese descrita no (brilhante) livro Homo Deus, do historiador/filósofo Yuval Noah Harari, autor do também não menos brilhante Sapiens. A mensagem chave da obra incide substancialmente na ideia de que, no decorrer do século XXI, o humanismo levaria os homens na busca incessante pela imortalidade, felicidade e poder, com uma revelação final de que um super-homem, o tal Homo Deus (um deus humano), capaz de alcançar, entre outras aptidões, a vida eterna, poderia estar prestes a surgir.

Mas… na prática, a teoria é outra. Numa época em que a tecnologia nos permite de facto sonhar com um homem totalmente independente e alheio aos humores da natureza, num momento em que o mundo caminha a passos largos para uma menor dependência dos combustíveis fósseis, num momento em que empresas como a Tesla nos permitem voltar a sonhar com a sempre desejada conquista do espaço, quando o ser humano enfrenta um problema não de dificuldade de comunicação, mas sim de excesso de capacidade de comunicação através dos mais diferentes dispositivos e plataformas, numa época em que os avanços na medicina e na biotecnologia são tantos que arriscam transformar o temível cancro numa doença crónica, num momento em que a clonagem e as manipulações genéticas a ela associadas parecem prometer um sem fim de possibilidades, nada como um simples vírus para actuar como um autêntico murro no estômago na proverbial arrogância da ciência e tecnologia.

Olhando para o problema europeu, os efeitos devastadores do vírus têm conduzido a fenómenos tão distópicos que nem a literatura mais ousada conseguiu imaginar. O Covid-19, na Europa, parece ter ganho vida, qual comboio desgovernado, varrendo aldeias e cidades, ricos e pobres, destruindo tudo à sua voraz passagem. Não me surpreende a aparente incapacidade e altivez dos europeus, mais humanistas (e talvez por isso mais individualistas), respeitarem a simples normativa de ficar em casa, por contraponto com a maior disciplina chinesa, onde o indivíduo é historicamente esmagado pela dimensão de uma sociedade e de uma demografia tão grandes e tão descontroladas que lhe ameaçam a própria individualidade.

O que surpreende nos europeus, nomeadamente nos seus líderes, é a passividade com que enfrentam o problema do ponto de vista geopolítico. E essa passividade alastra-se, de forma natural, aos seus povos. Até ao momento não existiu da parte de nenhum responsável político uma mensagem de condenação e de chamada à responsabilidade da China no contexto desta pandemia intercontinental. Também nas redes sociais, os europeus parecem mais despertos e mais disponíveis para vociferar contra Trump e a sua peregrina e estapafúrdia ideia de obter o exclusivo da putativa vacina fabricada pelos alemães, do que para levantar a voz contra a China. Mais: existem muitos europeus a elogiar a China pela sua pronta disponibilidade para ajudar os países europeus, logo depois da resolução do seu problema interno com medidas drásticas, só possíveis no império do meio. E olho com surpresa para o sofrimento italiano (e europeu), algo estoicista, paciente, resignado, como se não tivesse sido possível, de todo, evitar a tragédia.

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Para que se tenha noção, a China foi berço, no espaço de poucos anos, da gripe suína (2009), da SARS (2002) e, agora, da SARS-CoV-2 (2020). Colocando de lado as teorias da conspiração sobre a manipulação em laboratório deste novo vírus (já aparentemente comprovado por cientistas) e assumindo que o mesmo terá, como se refere, sido transmitido do morcego para o pangolim e deste para o humano, surpreende a passividade e o encolher de ombros dos europeus perante tamanha catástrofe. Nenhum dos governantes italianos, muito menos os governantes da frágil e anacrónica UE, ousaram chamar a China às suas responsabilidades no plano internacional.

É importante fazer notar que a China já não é a velha promessa económica, nem está a passar por uma fase de crescimento inicial (como no início dos anos 90). Retirando a UE da equação, a China é já hoje a segunda maior economia do mundo, logo atrás dos Estados Unidos, mas com um potencial de crescimento muito superior ao dos americanos, fruto da sua espantosa demografia e mercado interno em crescimento. O comportamento chinês nesta pandemia, não obstante o seu vigor e poderio económico, surpreende pois pela irresponsabilidade que, creio, só terá comparação com o desastre de Chernobil (1986), no esplendor da decripitude da URSS.

Não se depreenda deste texto que o culpado directo desta pandemia é Xi Jinping, tal como as responsabilidades pela tragédia ucraniana em Chernobil não podem ser colocadas nos ombros de Gorbachev. Mas não é coincidência que, uma e outra, aconteçam neste tipo de regimes e, mais concretamente, neste tipo de sociedade, na qual o indíviduo é esmagado perante o todo que é o grupo, a população, o Partido, o Estado, a Nação.

É verdade que não sabemos ainda o que se passou verdadeiramente em Wuhuan, mais concretamente no seu mercado central. Mas sabemos, sim, o que se passou em Chernobil. E o que se passou em Chernobil foi um acumular de erros e de omissões típicos de um regime de partido único, onde a oposição e os direitos, liberdades e garantias do cidadão são esmagados perante os superiores interesses do Estado, que se sobrepõem de forma arrasadora face ao indíviduo. Sabemos hoje que as autoridades soviéticas reagiram de forma confusa e errática perante o sucedido no reactor 4 da central nuclear, primeiro tentando ocultar a catástrofe, depois minimizando-a e, só depois de intensas pressões internacionais, assumindo-a conforme se impunha.

Por um lado, podemos mostrar-nos revoltados com o facto de, em pleno ano 2020, com a China levando já praticamente 30 anos de crescimento económico quase sempre de dois dígitos e ascendendo já à categoria incontestável de super-potência global, plenamente integrada nas rotas do comércio internacional, detentora de tecnologias avançadíssimas de controlo e segurança através de milhões de câmaras de vigilância instaladas para vigiar os seus cidadãos, ainda existirem mercados chineses sem cumprirem com o mínimo de condições de higiene e saúde pública, onde se acumulam em jaulas, umas por cima das outras, animais tão díspares entre si como cobras, morcegos, pangolins, toda a espécie de roedores, lagartos, aves raras, entre outras espécies utilizadas não raras vezes para alimentar uma elite cosmopolita chinesa desejosa de, sob uma qualquer estética kitsch, se aproximar da velha China rural dos seus antepassados, recorrendo a poções e a remédios feitos a partir destes animais.

Por outro lado, e percebendo que as tradições de um país que ainda há 30 anos era eminentemente rural e arcaico são difíceis de mudar de forma tão rápida, tal como em Chernobil, podemos apontar o dedo à incúria e à cultura militar e de segurança que existe em todos os funcionários governamentais deste tipo de sociedades, sempre sujeitos a um controlo férreo por parte da suas chefias, onde tudo é sujeito a obrigações de segredo e confidencialidade, sob penas dos putativos avanços científico-tecnológicos virem a ser conhecidos por supostos Estados inimigos.

É devido a Chernobil que sabemos hoje que o regime soviético foi capaz de criar uma cultura tão grande e abjecta de segredo e confidencialidade que permitiu inclusivamente que os primeiros bombeiros que chegaram à central nuclear, em 1986, para combater o fogo, não tivessem sido informados que estavam a ser expostos a uma radiação que se viria a revelar fatal. O mesmo poderá passar-se, em pleno século XX, com os primeiros médicos que contactaram com esta doença, não podendo ter avisado a comunidade internacional em tempo útil para a enorme facilidade de contágio e para os terríveis efeitos deste novo vírus ou divulgando apenas informações que não eram as mais fidedignas. Infelizmente, as ruas de Itália e de toda a Europa são hoje as novas Pripyat, a localidade mais próxima de Chernobil, apenas evacuada 36h após o acidente. Em 1986, os soviéticos viram-se então forçados a divulgar o incidente quando uma central nuclear na Suécia notou o aumento dos níveis de radioactividade. Fizeram-no através de uma declaração curta, que dava conta do acidente e da criação de uma comissão de inquérito. Ora, nada na história da China moderna, nomeadamente na china pós-Tiananmen, nos garante que comportamentos do género não tenham sido duplicados pelas autoridades chinesas, em especial pelos sempre atarefados e muito zelosos funcionários do Partido Comunista, omnipresentes nos hospitais, nas escolas, nos organismos públicos, nas empresas privadas, em todos os sectores da sociedade chinesa contemporânea.

O coronavírus, como os cometas que sobrevoam a Terra, irá passar até que deixe de se sentir ou ver o seu rasto. As várias mortes que fizer no seu trajecto serão uma tragédia, mas o que mais me atormenta neste momento é o que pode vir aí. Na Idade Média, os fenómenos da natureza, as doenças, as epidemias e as arbitrariedades dos senhores feudais faziam voltar as populações para a oração a Deus. Hoje, mais uma vez perante fenómenos que sentimos ser de todo incontroláveis, e até mesmo inconcebíveis, e ao ver uma população que verdadeiramente desespera por um estado de emergência como se competisse ao todo-poderoso Estado tudo resolver e eliminar a ameaça como que por artes mágicas, temo que nos voltemos a virar para ideologias totalitárias que prometem, com penhor da liberdade, a nossa inestimável segurança. O aparente sucesso chinês na contenção da epidemia pode ser sedutor para muitos, mas ao invés vislumbro no aparecimento do vírus um sinal e um sintoma da própria desgraça chinesa e do seu PCC.

No meio da tragédia, enquanto escrevo estas linhas, recebo um alerta de que se avistam golfinhos nos até aqui ultra-poluídos canais venezianos. Ao contrário do que o homem acredita, a sua existência na terra não se compara nunca a um ser todo-poderoso como o Homo Deus de Harari. Bastou uma humanidade em modo pause por uns meses para percebermos que a natureza, tal como o coronavírus nos dolorosamente prova, é de facto uma Mãe. E como concluiria a velha criança Mafalda de Quino “uma mãe é uma mãe e há que respeitá-la”.