Talvez não tenha ficado claro para todos, mas a proposta de alteração das idas quinzenais do Primeiro-Ministro à Assembleia da República para presenças de 2 em 2 meses não partiu de António Costa, nem do Governo, nem do PS, nem da esquerda, mas sim do PSD que é – ou deveria ser – o grande partido da oposição.

Os debates quinzenais, é sabido, não são o pináculo da criação, mas permitem concretizar alguns postulados preciosos de um Estado de Direito: colocam o Parlamento no centro do debate político, fazem luz ao princípio da separação de poderes, geram um ambiente de checks and balances e fazem o Governo voltar, com frequência, à casa que o viu nascer, pois a sua legitimidade no nosso sistema advém das composições existentes na Assembleia da República. Os eleitores sentiam, nestas discussões quinzenais, o pleno realizar do seu voto, ao verem os deputados democraticamente eleitos pedir contas ao executivo.

A ideia de que o Governo perde muito tempo na preparação dos debates quinzenais, quando devia estar a trabalhar, não é apenas má: demonstra pequenez e vistas curtas.

Não se percebe o que vai na cabeça de Rui Rio com tal desígnio. Talvez o PSD já não se lembre, mas a instituição dos debates quinzenais deu-se em 2007, com a reforma do Regimento da Assembleia da República, pela mão dos próprios sociais-democratas. Estes debates não permitiram ao PSD, na altura mais crítica, fazer o devido escrutínio à actividade dos últimos dias do Governo de José Sócrates, com as dramáticas consequências por todos conhecidas. Com uma presença de 2 em 2 meses no Parlamento, é pouco provável que a oposição consiga agora escrutinar ao pormenor as acções do actual Governo, como é próprio de um Estado de Direito de tradição ocidental, com a agravante de nos encontrarmos às portas de uma crise devastadora. Juntando a isto uma comunicação social, cuja independência, rigor e escrutínio nunca foram fortes, e um histórico de corrupção e compadrio entre elites políticas e grandes empresas, temos o caldo cozinhado para um desastre colossal.

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Mais a mais, a tese de que o Governo tem de trabalhar representa um desconhecimento das obrigações constitucionais de um Executivo, que deve prestar contas à Assembleia da República, até porque o primeiro é encontrado e designado no seio da segunda. Ao apelar a esse trabalho, Rio vem postular que o trabalho do executivo se faz nos corredores, nos meandros dos gabinetes e nas acções de propaganda pelo país. Num país onde a sociedade, algo ressentida, acusa os políticos de viverem numa bolha e distantes dos cidadãos, tirar a obrigação do Primeiro-Minsitro de ir à Assembleia da República com o argumento de trabalho, é absolutamente indecoroso. O trabalho de um líder governamental não é técnico, nem deve ser burocrático, mas eminentemente político. Se a casa-mãe do nosso sistema é o Parlamento, qual a razão então de o retirar destas sessões? As suas funções não são apenas a de conduzir a política geral do país, mas sim a de prestar contas da sua actividade: uma e outra são interdependentes e indissociáveis.

Talvez Rui Rio tenha, de facto, uma estratégia de poder para o PSD, que é difícil de descortinar ao cidadão comum. Pessoas próximas dizem-me que Rui Rio terá, mais cedo ou mais tarde, o poder a cair-lhe no colo e que a sua estratégia de não confrontação e de oposição “responsável” ao Governo de António Costa trará os seus frutos a breve trecho.

Não partilho deste entendimento, confesso, nem percebo qual é a estratégia ou a ideia do PSD para o país. Penso aliás que o PSD, algo cansado pela forte oposição sofrida ao Governo de Passos Coelho, desistiu, formalmente, de apresentar uma ideia e um rumo para Portugal diferentes daqueles que são propostos por Costa e pelos parceiros da esquerda. O PSD capitulou na intenção de efectuar uma verdadeira reforma na Administração Pública, ou de exigir uma maior regulação e transparência na relação entre empresas e Estado em defesa de uma economia de mercado saudável e competitiva. Rui Rio aposta agora todas as fichas no bloco central, o que revela um cruel desconhecimento da realidade: basta ver as recentes declarações de Pedro Nuno Santos que, mesmo perante a oposição mais colaboracionista de sempre e com um Presidente da República em total harmonia com o executivo, defende que o PS devia voltar aos acordos escritos com a esquerda e que nunca deveria apoiar um Presidente cuja área original é a direita. As coisas são o que são e não o que Rio gostava que fossem.

Neste contexto, com um PSD em auto-imolação, com um CDS varrido do mapa político, com uma Iniciativa Liberal em dificuldades para sair do seu nicho, com uma esquerda ainda amolecida pela Geringonça e com um escrutínio na Assembleia reduzido aos mínimos, por muito que pense que está a retirar palco a Ventura, Rio está a abrir-lhe mais uma vez a porta para que este se afirme como a única voz da oposição. O crescimento do Chega resulta muito mais da complacência e conformismo da direita do que se possa pensar.

Durante os anos da reconquista cristã, os cristãos invocavam muitas vezes o Reino do Preste João, um território imaginado situado algures na Ásia Central ou no Extremo Oriente (que se veio a revelar localizar-se na actual Etiópia). A ideia lendária de um reino cristão desconhecido, que estivesse situado atrás das linhas do inimigo, mais do que uma crença fortemente enraizada num possível ataque aos exércitos muçulmanos pela retaguarda, serviu para alimentar a esperança dos exércitos e populações cristãs, nomeadamente em tempos difíceis de guerras e invasões. A direita em Portugal precisa de um reino do Preste João como de pão para a boca, sob pena de ser definitivamente aglutinada pela ambição e populismo de Ventura. É necessário olhar o horizonte e vislumbrar algo em que se possa acreditar. Rui Rio e a direita, não tendo nenhuma ideia ou desígnio de reformar o país, não servem de consolo nem de mobilização a nenhuma franja do nosso eleitorado. Isto só pode acabar mal.