Parece mentira, mas é verdade: pela resolução nº 69/2020, aprovada a 10 de Julho e publicada no Diário da República nº 154/2020, Série I, de 2020-08-10, a Assembleia da República “recomenda ao Governo o apoio às associações e colectivos de pessoas lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais, transgéneros e intersexuais no âmbito da crise pandémica”. Não só se exige que se “garanta o financiamento” dessas entidades, “enquanto se manifestarem os efeitos da crise sanitária, social e económica” (nº 1), mas também se “amplie, ao abrigo de protocolos a celebrar com as associações e colectivos LGBTI, programas de sensibilização, informação e combate às discriminações, priorizando temáticas LGBTI” (nº 3)!

Apesar das estatísticas oficiais sobre a pandemia só referirem óbitos de homens e mulheres – o que é estranho, havendo, segundo dizem, tantos géneros … – o Parlamento entende prioritário o apoio às “associações e colectivos de pessoas lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais, transgéneros e intersexuais”, não obstante a sua aparente imunidade ao vírus. Já lá vai o tempo em que a esquerda se ocupava das causas sociais, porque agora, como se vê, dedica-se a questões marginais.

Com certeza que as pessoas – não as ‘associações e colectivos’ que, à sua conta, vivem da subsidiodependência – que sofrem qualquer disforia de género, merecem toda a consideração e respeito e devem ser apoiadas pelo Estado, mas não de uma forma que obviamente as discrimina, esquece os mais necessitados e ofende o princípio constitucional da igualdade.

Como, na primeira página do Público do passado dia 17 se noticiava, “mais de 40% dos doentes esperam por uma cirurgia já fora do prazo aceitável”, ao mesmo tempo que se recordava que “há 242 mil doentes na lista de espera para cirurgia, dos quais cem mil viram ultrapassado o prazo recomendado para a sua patologia”. Devido a este monumental atraso, os “Hospitais já emitiram mais de 143 mil vales-cirurgias”. Esta é, infelizmente, a crónica de um país adiado.

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Não é menos preocupante a situação das pessoas internadas nos lares, de que o caso de Reguengos de Monsaraz é tristíssimo exemplo. Foi com consternação que o país se inteirou das 18 vítimas mortais, mas foi com ainda maior estupefacção que soube que o Governo, ao contrário do Presidente da República, nem sequer leu todos os relatórios sobre esta tragédia, que deixou o país perplexo e amargurado.

Na mesma edição do Público, Stefano Scarpetta, director da OCDE para os assuntos laborais, recomenda o que, afinal, é uma medida do mais elementar bom-senso: “sectores ainda muito afectados têm de continuar a ser apoiados”. Tendo em conta a enorme crise social e laboral provocada pela pandemia, Scarpetta entende que “no curto prazo, o que se pode tentar é fazer garantir que estas pessoas recebem pelo menos o subsídio de desemprego. Não se consegue evitar que percam o emprego, mas pelo menos assegurar que, ainda que não tenham contribuído por um longo período de tempo, podem mesmo assim aceder ao subsídio de desemprego”. Está em causa a coesão social, mas também a sobrevivência de muitas famílias e pessoas, sobretudo “aqueles que não têm contratos sem termo, os empregados por conta própria, os mais jovens, os que têm poucas qualificações, os imigrantes”. Neste contexto, este director da OCDE entende que é imperioso “garantir alguma forma de proteção mínima a toda a gente”. É óbvio, não é?!

E que dizer do cansaço dos médicos, enfermeiros e auxiliares que lutam nos hospitais contra a pandemia, que não dá tréguas, nem sequer no verão?! Famílias que se viram obrigadas a prescindir das suas férias, profissionais da saúde impedidos de conviver habitualmente com os seus familiares e sempre sujeitos a contrair a infecção, contra a qual tão heroicamente lutam.

Também neste verão, temos o país a arder. Já se sabe que acontece sempre que chega o tempo quente e também que os meios humanos e materiais são escassos. Mas não é de ânimo leve que se assiste ao tristíssimo espectáculo das populações aflitas, a combater o fogo que ameaça as suas casas e culturas, os bombeiros exaustos a lutar horas a fio contra as chamas atiçadas pelo vento, as magras poupanças de uma vida a desaparecer na voragem de uma labareda, talvez provocada por uma mão criminosa e impune.

Este quadro, embora pintado com traços sombrios, não ignora o extraordinário exemplo dos médicos, enfermeiros, auxiliares e capelães hospitalares; nem o dos que prestam assistência nos lares, sendo tantas vezes família dos que não têm família; nem o dos bombeiros; nem o dos párocos, que infundem esperança junto das famílias em luto, confinadas, ou ameaçadas pela miséria e pela fome, a que a crise condena tantos lares.

E, ante este cenário, qual é a reacção do Parlamento? Que preocupa os deputados? Que recomenda ao Governo a geringonça parlamentar, a ampla maioria de esquerda que nos governa? Será que a sua prioridade é a saúde, tendo em contas os infectados, os confinados e os milhares de doentes que aguardam, há meses, uma intervenção cirúrgica urgente? Serão as famílias de luto? Serão os lares da terceira idade, cujos utentes deveriam merecer a atenção do país, agradecido pelas suas vidas gastas ao serviço de todos nós? Serão os desempregados, os jovens sem trabalho, os imigrantes, talvez condenados a engrossar as fileiras dos sem-abrigo que dormem ao relento, sob as arcadas ministeriais do Terreiro do Paço? Serão os profissionais de saúde, que dispensam campeonatos de futebol, mas que merecem mais condições, para melhor servir o país?

Nada disso! Para o Parlamento os velhos não contam, os doentes infectados, confinados, ou que aguardam uma cirurgia urgente, também não, nem os desempregados, nem as famílias enlutadas, nem os pobres. Os profissionais de saúde, ou os bombeiros, também não interessam, nem preocupam os deputados, nem os governantes. Os jovens sem emprego, os imigrantes, os refugiados, os sem-abrigo, os trabalhadores em layoff, os alunos sem aulas, não contam para a Assembleia da República, nem para o Governo. Importante mesmo é o “apoio às associações e colectivos de pessoas lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais, transgéneros e intersexuais”!

Afinal, esta não é apenas a crónica de um país adiado, mas de um Portugal alienado.