Não será necessário explicitar como os coletes amarelos debutaram algo de paradigmático no presente contexto sociopolítico pois todos o observamos com maior ou menos entusiasmo, maior ou menor solidariedade, maior ou menor admiração. É, todavia, consensual: fizeram-no para mudar (e conseguiram-no parcialmente). Aqui, insere-se uma premissa algo perigosa, mas não falaciosa como explicarei adiante, que é a dedução que a mudança é movida por violência. Ora, esta premissa, que se corporiza com facilidade na famosa indução de Trotsky de que o sucesso de um movimento social depende de um estado revolucionário permanente, não é exclusivamente característica do sistema de pensamento metapolítico de génese marxista. Nem da Esquerda. Nem da Direita. Nem dos Extremos. A noção de que a violência é o motor da evolução e organização social é intrinsecamente humana a montante e animal a jusante.

O leitor encontrará exagero e extrapolação, por ventura, nesta minha última frase, o que é natural. Contudo, passo em minha defesa a definir o que se entende por violência. Por violência (vocábulo derivado do latim “violentia” que significava “ímpeto” deve entender-se a verbalização e/ou manifestação física de oposição/antagonismo a outrem ou a algo que inflicta nestes mesmos dano total ou parcial, num espectro conceptual mais abrangente. Ser-se oposto a algo não é ser-se violento, isso sendo apenas repulsa. Mas verbalizar consistentemente e/ou concretizar fisicamente, directa ou indirectamente, no outro com o objectivo de diminuí-lo e destruí-lo é ser-se violento. A este propósito, existe um breve artigo de fácil leitura de Vittorio Bufacchi, estudioso de Teorias da Violência, que incide sobre as duas conceptualizações da violência: a minimalista e a compreensiva.

Sumariamente e sem prejuízo da teorização do autor, a conceptualização minimalista da violência incide sobre a sua dimensão exclusivamente física, enquanto a conceptualização compreensiva estende-se à dimensão psicológica e contextual. Não se veja este tabelamento de um fenómeno tão complexo como é a violência como uma forma de soberba intelectual. De todo, pois apenas se trata de uma simplificação com um propósito meramente instrumental para uma compreensão mais eficiente do próprio fenómeno. Feita esta ressalva, retomo ao foco do presente artigo: como compreender o movimento e as manifestações vulgarmente ditas de “vandalismo” dos coletes amarelos?
Foram emitidas várias opiniões e pareceres, desde Cientistas Políticos, Sociólogos, Economistas, Historiadores, Políticos até Jornalistas, oscilando entre os argumentos de que se trata de um agrupamento genuíno de pessoas contra a polítical fiscal Francesa e de que se trata de um novo populismo de massas genuinamente surgido mas oportunisticamente aproveitados por determinados quadrantes políticos, ou da Extrema-esquerda ou da Extrema-Direita. Não me delongarei nestas apreciações pois não me parecem apropriadas para o foco deste artigo. Apenas me debruçarei a dimensão da violência neste fenómeno, começando por arguir que aquilo que observámos em Paris não se tratou de vandalismo nem de terrorismo (como alguns o designaram com uma certa infelicidade pelo que banaliza algo tão mais perverso e reprovável como é o terrorismo) mas sim de luta política.

O leitor apressar-se-á a contrapor com a evidência de que é possível fazer luta política sem recorrer a estes “meios”. É verdade mas também é verdade que os fins dos coletes amarelos não são os mesmos que os das manifestações convencionais ou até da própria competição dos agentes no seio de um sistema político. Os coletes amarelos são anti-sistémicos, não se revendo na estrutura nem nas premissas em que o presente sistema, cabalmente reflectido na Presidência de Macron, está alicerçado. Portanto, não foi o caso de Macron ter traído o eleitorado mas, sim, foi o caso de que existe uma franja considerável dos franceses que já nem no sistema se revêem.

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Enquanto a corrida de Le Pen (quase bem-sucedida) à Presidência conseguiu acomodar esta franja, a sua derrota despertou a velha concepção genericamente veiculada pelas pessoas de que “as coisas nunca mudam” e que molda a própria concepção do mais recente anglicismo importado que é a do “Establishment”. As coisas não mudam porque estão estabelecidas e se estão estabelecidas, não mudarão a não ser que algo de muito forte as mude. Esse algo muito forte é a violência e aqui arrogo-me ao conceito de Buffacchi para dizer que essa mesma violência é aquela conceptualmente designada de “compreensiva”. Isto, porque não é exclusivamente física. Aliás, é até maioritariamente discursiva e atitudinal. Os discursos de figuras como Trump ou Salvini (a mero título exemplificativo e sem qualquer julgamento ou conotação negativa associada pela minha parte) são “violentos” pela introdução de uma oposição consistentemente verbalizada contra outrem ou algo que visa infligir dano. Dano no “Establishment”, dano na União Europeia, etc…

Devo chamar à atenção para o facto de que a natureza violenta dos discursos não é necessariamente ofensiva ou defensiva, fazendo parte do que é a interacção humana. A violência está presente no nosso quotidiano e isso não é obrigatoriamente mau. Já a repressão desse “ímpeto” por via de condicionamento do discurso é altamente nociva para a própria coesão social pois canaliza a violência da sua vertente mais compreensiva e gerível para uma vertente mais imediata e minimalista da sua aplicabilidade. Os indivíduos entram numa espiral ansiosa e conspirativa de que a coerção do Estado (também uma forma violência e física) é também canalizada para a supressão das suas ideias e das opiniões. E reforço: estar em desacordo não é ser-se violento mas reduzir o desacordo às regras do politicamente correcto é socialmente correcto e faz extrapolar o desacordo para a oposição e a oposição para a revolta.

E o leitor pergunta: será isso um fenómeno recente? Não, não é. O ambiente que precedeu as Revoluções Liberais no século XIX e das Resistências Oposicionistas aos diferentes Regimes Autoritários no século XX e até agora era mesmo o do politicamente convencionado e do policiamento discurso, acompanhado por norma de uma situação económica crescentemente adversa. Mas será a economia o factor-chave no despoletar da violência social enquanto percursora das Revoluções Políticas? Não necessariamente mas não pode ser ignorado como combustível privilegiado da acção por ser o facto que mais influencia a sobrevivência diária de todos. Quando em Paris os manifestantes partiram montras e queimaram carros, não é que os proprietários fossem os particularmente visados mas sim que essas lojas, esses carros, essas localizações exclusivas eram o materializar, no entender dos manifestantes, do sistema que se combatia. Daí ter feito a nota de que não era vandalismo nem terrorismo, pois conceptualmente não se enquadra nem num nem noutro. Na verdade, tal como sucedera no período que precedera o estado revolucionário francês no final do século XVIII em que os motins eram frequentes até culminarem na explosão de violência colectiva que fora a Tomada da Bastilha e que inspiraria futuramente o ideal contido na expressão de cidadãos em armas.

A questão que resta é: será que o movimento dos coletes amarelos resultará numa Revolução Europeia, como certos grupos políticos acreditam? Possivelmente não, pois não haverá financiamento que os permita persistir em força no tempo. Contudo, isto não indicia que outros não o consigam. Mais: isto não indicia de todo que esta “onda de violência” desvanecerá simplesmente como se nada tivesse acontecido. Como tive oportunidade de defender em escritos anteriores, o encadeamento da violência é cumulativo, culminando em fenómenos racionalizados de extrema-violência e/ou de crueldade. Quase como descargas eléctricas, em abono da verdade e não encontrando melhor metáfora.

Cabe, pois, ao centro político moderaso não reflectido nos presentes actores político-partidários acomodar as reivindicações destas franjas sob pena da própria Democracia sofrer por dano colateral de algo que é simplesmente o descontentamento legítimo das populações.

Mestre em Estudos de Conflito – London School of Economics