O sétimo centenário do nascimento de Dante Alighieri foi ocasião para que o Papa Francisco, pela sua carta apostólica “Candor lucis aeternae”, de 25 de Março de 2021, evocasse este poeta cristão. “Se alguém quisesse perguntar por que motivo a Igreja Católica, por vontade do seu Chefe visível, tem a peito cultivar a memória e celebrar a glória do poeta florentino, é fácil a nossa resposta: porque, por um direito particular, Dante é nosso! Nosso, queremos dizer da fé católica, porque tudo nele respira amor a Cristo; nosso, porque muito amou a Igreja, cujas glórias ele cantou; e nosso, porque no Romano Pontífice reconheceu e venerou o Vigário de Cristo.” Assim se expressou São Paulo VI em 1965, por ocasião do sétimo centenário do nascimento de Dante, o celebrado autor da Divina Comédia, que foi excelentemente traduzida para português por Vasco Graça Moura (3º edição, Bertrand Editora, Venda Nova 1997) e magistralmente comentada pelo Professor Martim de Albuquerque (Dante, A Divina Comédia e a fé, Aletheia, Lisboa 2013) .

Dante, “melhor do que muitos outros, soube exprimir, com a beleza da poesia, a profundidade do mistério de Deus e do amor. O seu poema, expressão sublime do génio humano, é fruto duma nova e profunda inspiração, de que o Poeta aliás tem consciência quando fala dele como ‘poema santo que consagro, em que puseram mão o céu e a terra’ (Par. XXV, 1-2)”.

Francisco não é o primeiro Papa que se pronuncia sobre este vulto maior da cultura italiana e universal. Com efeito, os Papas Bento XV, Leão XIII, São Pio X, São Paulo VI, São João Paulo II e Bento XVI, também evocaram a obra de Alighieri, do ponto de vista literário e teológico. A Divina Comédia é um tratado sobre a escatologia cristã, bem como um magnífico exemplo de como a fé cristã estimula e incentiva a arte.

“Num momento histórico marcado por sentimentos de hostilidade à Igreja, o Pontífice (Bento XV) reiterou (…) a pertença do Poeta à Igreja, ‘a união íntima de Dante com esta Cátedra de Pedro’; mais, afirmou que a sua obra, apesar de ser expressão da ‘prodigiosa vastidão e agudeza do seu engenho’, recebeu ‘um poderoso impulso de inspiração’ precisamente da fé cristã. Por isso, ‘nele – continuava Bento XV – não devemos admirar apenas a altura sublime do engenho, mas também a vastidão do tema que a religião divina ofereceu ao seu canto’. E tecia o seu elogio, respondendo indiretamente a quantos negavam ou criticavam a matriz religiosa da sua obra: ‘(…) O motivo principal de elogio nele é este: ser um poeta cristão e ter cantado com acentuações quase divinas os ideais cristãos dos quais contemplava, com toda a alma, a beleza e o esplendor’. E o Pontífice prosseguia: a obra de Dante é um exemplo eloquente e válido para ‘demonstrar quão falso seja que o obséquio da mente e do coração a Deus corte as asas do engenho; pelo contrário, estimula-o e eleva-o’. Por isso, defendia ainda o Papa, ‘os ensinamentos que Dante nos deixou em todas as suas obras, mas sobretudo no seu triplo poema’ podem servir ‘como guia validíssimo para os homens do nosso tempo’, e de modo particular para alunos e estudiosos, já que ele, ‘ao compor o seu poema, não teve outro objetivo senão levantar os mortais do estado de miséria, isto é, do pecado e conduzi-los ao estado de beatitude, isto é, da graça divina.’”   

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Embora a arte e o conhecimento científico contemporâneos pareçam divorciados da religião, a fé cristã foi o grande motor do desenvolvimento cultural e artístico da Europa medieval e renascentista. Deve-se à Igreja o desenvolvimento de todas as artes, sem excepção, bem como a criação das universidades, que foram o berço do conhecimento moderno, não só filosófico-teológico, mas também científico e tecnológico.

Contudo, uma tal constatação histórica não deve ser pretexto para “atitudes triunfalistas”, como preveniu Paulo VI. “Dante é nosso: podemos justamente repeti-lo. E afirmamo-lo, não para fazer dele um almejado troféu de glória egoísta, mas antes para nos lembrar a nós próprios o dever de o reconhecer como tal e explorar na sua obra os tesouros inestimáveis do pensamento e sentimento cristãos, convencidos como estamos de que só quem penetra na alma religiosa do insigne Poeta pode compreender profundamente e saborear as suas maravilhosas riquezas espirituais.”

Também o Papa Bento XV tinha reivindicado a pertença de Dante ao legado católico, embora a sua obra ultrapasse as fronteiras das religiões e nacionalidades: “Há uma razão particular para considerarmos que (…) Alighieri é nosso (…). Com efeito, quem poderá negar que o nosso Dante tenha alimentado e fortalecido a chama do engenho e a virtude poética inspirando-se na fé católica, a ponto de cantar num poema quase divino os mistérios sublimes da religião?” Se é verdade que Alighieri é internacional, sem deixar de ser italiano, também a sua obra é de toda a humanidade, sem deixar de ser católica, que, por sinal, é sinónimo de universal.

A Divina Comédia não tem apenas valor eclesial porque é, como qualquer obra de arte, mundial e intemporal. “O poema de Dante é universal: na sua amplitude imensa, abraça céu e terra, eternidade e tempo, os mistérios de Deus e as vicissitudes dos homens, a doutrina sagrada e a que deriva da luz da razão, os dados da experiência pessoal e as memórias da história.” A obra-prima de Alighieri cumpre uma finalidade social: “O objetivo da Divina Comédia é primariamente prático e transformador. Não se propõe apenas ser poeticamente bela e moralmente boa, mas capaz de mudar radicalmente o homem e levá-lo da desordem à sabedoria, do pecado à santidade, da miséria à felicidade, da visão terrificante do inferno à contemplação beatificante do paraíso.”

A Igreja celebra os mistérios de Jesus Cristo, bem como as vidas santas de Maria, dos apóstolos e dos santos, mas não dos filósofos, nem dos cientistas, nem dos poetas e artistas cristãos. É pena, mas são tantos que seria impossível dedicar, a cada um, uma comemoração anual. Por isso, só por ocasião dos centenários dos seus nascimentos e morte é que a Igreja assinala esses expoentes máximos do génio mundial e cristão.

A arte cristã é uma catequese para os crentes, e uma expressão universal da verdade: a beleza de uma catedral gótica, ou a sublimidade de um Requiem, permitem que os ignorantes, através da arte, conheçam a verdade que nos faz livres (Jo 8, 32).     

A propósito de Dante, escreveu Paulo VI, que “a teologia e a filosofia têm com a beleza ainda outra relação, e é esta: a beleza, ao emprestar à doutrina o seu vestido e ornamento, com a suavidade do canto e a visibilidade da arte figurativa e plástica, abre a estrada para os seus preciosos ensinamentos chegarem a muitos. As pesquisas profundas, os raciocínios subtis resultam inacessíveis aos humildes, que são uma multidão, e famintos também eles do pão da verdade. Entretanto estes percebem, sentem e apreciam o influxo da beleza e, por este veículo, brilha mais facilmente para eles a verdade e nutre-os. Bem o compreendeu e realizou o senhor do altíssimo canto, cuja beleza se tornou serva da bondade e da verdade, e a bondade matéria da beleza”.