‘Eu sou Europeu’. Assim começava o artigo em que o então colunista do The Daily Telegraph Boris Johnson definia a sua posição relativamente à permanência ou não do Reino Unido na União Europeia. Apesar de visto com sobranceria pelo establishment do partido conservador, Boris – como era conhecido junto do público – gozava de uma enorme popularidade junto do eleitorado britânico.
Desde a criação da figura do Mayor de Londres em 2000, Boris Johnson foi o único político conservador capaz de quebrar a hegemonia do Partido Trabalhista, derrotando o então Mayor Ken Livingstone em 2008 e novamente em 2012. As realizações dos Jogos Olímpicos na capital britânica nesse verão ajudaram a consolidar o legado de Johnson e a passar a imagem de um líder conservador cosmopolita e progressista, capaz de conjugar na perfeição um certo tradicionalismo britânico com o Reino Unido do século XXI.
Não era por isso inteiramente claro para onde este penderia no debate sobre o Brexit. Isto até ao dia 16 de Março de 2016, dois meses antes do referendo, quando Boris Johnson defendeu no seu artigo semanal no The Sunday Telegraph a saída do Reino Unido da União Europeia. Estaria a partir daí ativamente envolvido na campanha do referendo onde o autocarro vermelho com a frase ‘enviamos 350 milhões de libras por semana para a UE. Vamos em vez disso financiar a NHS’ se tornaria o símbolo maior de uma campanha cheia de equívocos e meias-verdades.
No dia 23 de Junho, 51.8% dos votantes no referendo concordariam com Johnson iniciando-se assim um período de extraordinária turbulência política no Reino Unido que, sete anos mais tarde, tem mais um episódio na demissão de Boris Johnson agora primeiro-ministro britânico (cargo que ocupava desde Julho de 2019 depois de Theresa May ter sido igualmente forçada a demitir-se por pressão, entre outros, de… Boris Johnson).
Rapidamente se percebeu que Boris Johnson primeiro-ministro seria bastante diferente de Boris Mayor de Londres. Rodeado no governo por apoiantes do Brexit e com o irreverente Dominic Cummings (um dos grandes artífices, se não mesmo o principal, da campanha a favor da saída do Reino Unido), a comandar as tropas a partir de 10 Downing Street, o governo de Johnson foi uma sucessão de crises e problemas, desde as negociações do Brexit, passando pela forma como respondeu à pandemia (o Reino Unido tem o maior número total de mortos por Covid-19 registados na Europa Ocidental), até ao voto de confiança dos seus deputados há umas semanas atrás da qual sobreviveu por pouco. Pelo meio, houve oportunidade para múltiplas novelas, desde o papel no governo da sua antiga amante e agora esposa Carrie Johnson, ao despedimento de Dominic Cummings, passando pela retirada atribulada do Afeganistão. Isto para não falar do interminável Partygate, que consumiu e ainda consume os media britânicos há vários meses. A cada crise ou remodelação, Boris Johnson foi limitando o seu governo àqueles que (ainda) lhe eram leais, independentemente da sua competência ou habilitações. A mentalidade bunker foi-se tornando cada vez mais visível até ao ponto de não retorno de quarta-feira passada, quando uma série de membros do seu governo apresentaram a demissão, pressionando Boris Johnson para este se demitir. Do eleitoralmente imbatível Boris Johnson, que nas eleições antecipadas de 2019 conseguiu o maior resultado eleitoral para os conservadores desde a vitória de Margaret Thatcher em 1987, pouco parece restar, ou pelo menos assim pensam os deputados do seu partido.
Em Outubro de 2016, num livro publicado pelo editor de Política do Sunday Times, Tim Shipman, Boris Johnson terá confirmado que quando escreveu o artigo a defender a saída do Reino Unido da UE, teria igualmente escrito um outro artigo a defender a sua permanência, alegando que os custos económicos e a possível dissolução do próprio Reino Unido estariam em causa caso este saísse da UE. Esse artigo acabaria por ver a luz do dia, mas Boris Johnson defendeu que se tratou simplesmente de um exercício intelectual, em que comparou as duas posições, mas que no final de contas os benefícios claramente superariam os custos (entretanto calculados à volta dos 550 EUR por trabalhador, por ano, até ao final da década).
Retrospetivamente e conhecendo as dificuldades que Boris Johnson tem com a verdade, é impossível dizer se este artigo foi ou não mais do que um puro exercício intelectual. Em bom rigor, o seu conteúdo estava bastante em linha com as suas posições enquanto Mayor de Londres e ninguém se espantaria na altura se essa tivesse sido a sua posição.
A possibilidade de assumir a liderança do partido, opondo-se a David Cameron no referendo poderá ter pesado mais forte na sua decisão.
A verdade é que se a posição final adotada por Boris Johnson na questão do Brexit poderá ter contribuído de forma decisiva para a saída do Reino Unido (a combinação da popularidade de Johnson na altura e a pequena diferença entre votos a favor e contra no referendo fazem querer que sim), também acabaria por moldar o seu comportamento político nos seis anos subsequentes. Primeiro, como ministro dos negócios estrangeiros do governo de Theresa May, do qual se demitiria por achar a posição do governo demasiado softe depois como primeiro-ministro, o Boris que agradava a liberais londrinos e conservadores deu lugar a um populista nacionalista, sem uma agenda coerente rodeado somente por aqueles que lhe eram absolutamente leais e que publicamente defendiam os benefícios da saída do Reino Unido da UE. A exemplo disso, em Fevereiro de este ano criou o posto de Secretario de Estado para as Oportunidades do Brexit, tendo nomeado Jacob Rees-Mogg, um ultra-Brexiteer, para o cargo. Uma das primeiras medidas de Rees-Mogg foi escrever um artigo para o tabloide The Sun solicitando os seus leitores a enviar ideias sobre como tornar o Brexit uma oportunidade.
Em suma, nunca saberemos o que teria acontecido a Boris Johnson caso este tivesse optado por defender a permanência do Reino Unido na UE. Talvez o Não (à permanência) tivesse na mesma vencido, mesmo que por uma margem ainda mais pequena. Talvez a permanência na UE tivesse ditado uma carreira de sucesso para David Cameron enquanto primeiro-ministro, dificultando o caminho para as ambições de Boris Johnson. Nunca saberemos nada disso. Sabemos, no entanto, que o Boris cosmopolita e liberal sempre foi uma figura que se coadunou melhor com a personalidade expansiva de Johnson. Sabemos que o enorme capital político de que dispunha na altura mais cedo ou mais tarde o colocariam numa posição favorável no contexto do Partido Conservador. Sabemos também que o Brexit acabou por definir e limitar a identidade de Boris Johnson enquanto primeiro-ministro ao ponto de esvaziar completamente o seu capital político, se não totalmente junto do eleitorado, certamente junto dos deputados do seu partido. Boris Johnson sai assim pela porta pequena. Pelo caminho deixa um país mais dividido, menos rico e com um futuro incerto pela frente.