Liz Truss chegou ao fim da linha 44 dias de depois de ter assumido o cargo. Nunca um primeiro-ministro britânico tinha estado tão pouco tempo no poder. Essa distinção pertencia a George Canning que teve o infortúnio de falecer 119 dias depois de ter chegado ao poder. Em breve ficaremos a saber quem vai ser o novo inquilino de 10 Downing Street, o quinto em pouco mais de seis anos. Sempre do partido conservador.

Com a vitória da ala eurocética no referendo relativo à saída do Reino Unido da União Europeia em 2016, e a subsequente saída de David Cameron e entrada de Theresa May, os Tories entraram num processo de crescente exclusão de grupos dentro do partido conservador: primeiro, com Theresa May, os remainers não-arrependidos, depois com Boris Johnson, os apoiantes de Theresa May, e, por fim, com Liz Truss, também os apoiantes de Rishi Sunak (antigo ministro das finanças e adversário nas eleições diretas do partido). Progressivamente, a pool de talento do partido foi ficando cada vez mais reduzida, enquanto se tornava ideologicamente mais assertiva. Conservadores radicais, como Jacob Rees-Mogg ou Suella Braverman, cresceram em estatuto dentro do partido, afirmando-se como figuras importantes no governo de Liz Truss.

A mensagem do novo governo era clara: estava na hora de finalmente aproveitar a fundo (leia-se, desregulamentação) os ‘benefícios’ do Brexit. Tais ambições seriam temporariamente suspensas com o falecimento de Isabel II, mas assumiriam a forma de ‘mini-orçamento’ umas semanas mais tarde (a 23 de Setembro), quando o Ministro das Finanças Kwasi Kwarteng apresentou o que prometia ser um verdadeiro choque fiscal, com a redução de impostos, particularmente para os salários mais elevados. Seria a aplicação efetiva do Britain Unchained, título do livro publicado uma década atrás (2012) por um grupo de deputados conservadores, dos quais faziam parte… Liz Truss and Kwasi Kwarteng. Nesse livro, os trabalhadores britânicos eram apresentados como ociosos (‘idlers’) e o país descrito como sendo excessivamente burocrático e com impostos demasiado altos, o que impedia a inovação e o crescimento económico.

Num contexto de inflação galopante e de uma crise económica e energética, os mercados reagiram de forma agressiva à falta de um plano concreto de como estes cortes seriam compensados em termos orçamentais (ou de como exatamente contribuiriam para o crescimento económico no curto prazo). De forma mais abrangente, havia a noção clara de este ser um governo de segundo nível, sem capacidade para lidar com as enormes dificuldades que o país enfrenta: do ambiente à saúde.

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Perante uma enorme pressão dentro e fora do partido (as sondagens mais recentes dão uma vitória esmagadora ao Partido Trabalhista), Liz Truss foi obrigada a despedir o seu Ministro das Finanças e a anunciar a sua substituição por Jeremy Hunt, um membro da ala moderada do partido. Isto depois de Kwarteng ter anunciado a reversão de algumas das medidas anunciadas. Truss foi forçada a assumir os seus erros, e na prática a conceder o controlo do poder ao partido, o que rapidamente se viria a revelar uma solução insustentável. As escaramuças entre os deputados conservadores na noite de 19 de Outubro no palácio de Westminster, com murros e empurrões à mistura depois do partido Trabalhista ter convocado um debate de última hora sobre fracking, davam a imagem de um partido à deriva, sem líder. Na manhã seguinte, Liz Truss apresentava a sua demissão.

Seria incorreto avaliar a desastrosa liderança de Liz Truss como um mero erro de casting. Pelo contrário, apesar do ‘mini-orçamento’ de Kwasi Kwarteng ter ido um pouco para lá do prometido por Liz Truss em termos de cortes de impostos, as linhas gerais do mesmo correspondiam ao programa político que tinha levado 57.4% dos membros do partido conservador a escolher a então Ministra dos Negócios Estrangeiros como nova primeira-ministra poucas semanas antes. No dia a seguir à apresentação do orçamento, o conservador (e extremamente influente) Daily Mail tinha como manchete: ´Finalmente um orçamento conservador’. A agenda política de Liz Truss era a agenda política de uma boa parte do partido.

O desnorte que foi o seu governo corresponde no fundo ao desnorte que assola um partido conservador cada vez mais velho em termos dos seus membros e mais pequeno quanto à qualidade e competência dos seus quadros. Um partido que idolatra Margaret Thatcher, mas que se foca nos anos de crescimento económico e não no que esta precisou fazer para lá chegar. Um partido sem respostas e cansado de estar no poder.

Ainda é cedo para saber o que vai acontecer nas próximas semanas, mas é de esperar que haja necessidade de convocar eleições legislativas antecipadas (pela quarta vez em sete anos). Qualquer que seja o novo governo – provavelmente liderado pelos Trabalhistas de Keir Starmer – vai ter pela frente uma tarefa hercúlea de reparar os danos causados nos últimos meses de governo conservador, ao mesmo tempo que terá de implementar reformas em múltiplos setores (e negociar um acordo permanente com a União Europeia). Isto num contexto internacional economicamente desfavorável, ainda muito marcado pelo conflito na Ucrânia. O futuro próximo da política britânica apresenta-se assim na mesma linha do seu passado recente: profundamente incerto.