A dedicação, a entrega, o amor à prática da boa Medicina e até mesmo a resiliência, não são características que se relacionem diretamente com o sítio onde se exerce, mas sim com quem exerce. Está em cada um de nós um espírito de missão integrado num Sistema de Saúde global em que o SNS é o pilar fundamental.
A boa capacidade de gerir Recursos Humanos devia ser uma qualidade universal no século XXI. É muito difícil acreditar que exista quem não pratica a empatia, sobretudo quando exerce cargos de grande responsabilidade.
São sucessivos os ataques aos profissionais de saúde no SNS, com se a culpa do que corre mal fosse de quem exerce o seu trabalho com os recursos humanos e físicos de que dispõe – e são escassos e desadequados.
Em Agosto de 2020 o primeiro-ministro referia-se aos médicos como cobardes. Agora, em novembro de 2021, a ministra da Saúde refere-se aos médicos como pouco resilientes. A mesma ministra que disse que “as equipas de saúde estão hoje mais saudáveis do ponto de vista da sua missão social”. Haverá possibilidade de dizer alguma coisa pior?
Entretanto, a capacidade humana e técnico-científica do SNS fica comprometida e esse pilar fundamental do Sistema de Saúde vai ficando enfraquecido. Não são apenas 400 médicos que saíram do SNS desde maio de 2021, mas também 1000 enfermeiros que entregaram escusas de responsabilidade no último mês, e um sem número de médicos com funções de chefia que se encontra demissionário.
Faz-se muito e do melhor no SNS, mas não com o apoio de quem o governa. Antes à custa da resiliência de muitos e da capacidade de todos os que lidam diretamente com os doentes (médicos, enfermeiros, técnicos, terapeutas, auxiliares, administrativos, mas também bombeiros, forças de autoridade, funcionários da restauração, funcionários da limpeza…). Mas, infelizmente, muitas vezes, há prejuízo dos doentes, sobretudo quando estamos nesta fase pandémica em que a resposta aos doentes crónicos está comprometida, sobretudo os doentes neoplásicos – mas já levamos 2 anos de pandemia e será que não houve mesmo capacidade de melhorar os circuitos e articular as respostas?
Os projetos, unidades e consultas temáticas que se mantêm e que se criam são fruto de grande esforço e, muitas vezes, são atividades desenvolvidas num período menos nobre da atividade, porque a resposta à urgência é sempre primordial – temos num SNS urgêncio-cêntrico e não centrado nas reais necessidades dos doentes.
E atenção, a pandemia não é justificação para tudo, já em 2016 um estudo da Ordem dos Médicos Portuguesa revelava que 44% dos médicos apresentavam burnout elevado, em grande parte relacionado com o número de horas de trabalho e o trabalho em urgência.
A par de tudo isto, carece a nossa sociedade de uma melhor literacia em Saúde, sobretudo nesta fase pandémica. Continuamos a pedir aos doentes não-urgentes para não se dirigirem aos serviços de urgência hospitalares, mas não lhes damos alternativas adequadas porque, por exemplo, os seus médicos de família estão desviados para os centros de vacinação ou para um sem número de tarefas burocráticas. Se pensarmos que dos doentes que mudam de médico, 24% muda porque o considera incompetente, mas 76% muda porque não consegue estabelecer com o médico uma relação pessoal (Olsen, 2010) – a empatia é tão importante: em tudo!
A boa integração global do Sistema de Saúde, a simplificação dos acessos, o reforço das equipas de saúde, a real aposta nos Cuidados de Saúde Primários, a dotação das equipas de Hospitalização Domiciliária, a reestruturação da rede de Serviços de Urgência e a definição dos médicos realmente afetos aos Serviços de Urgência são temas que carecem de revisão urgente.
O número de horas extraordinárias (obrigatórias) praticadas é impressionante, e não tem par em qualquer outra área da administração pública – e a melhor forma de receber um retorno não é com um convite impossível para final da Champions League, nem com a majoração das horas a partir das 500h extraordinárias quando o limite legal está nas 150h. As horas extraordinárias realizadas no SNS duplicaram em 4 anos de 11.485.820 horas em 2018, para um valor previsto de 20.318.172 horas em 2021 (fonte: site Transparência SNS). Numa altura em que tanto se promove as profissões familiarmente responsáveis, não parece haver possibilidade para cumprir essa missão de forma coerente.
Nesta fase de grande exaustão, o que está em causa é a dignidade dos profissionais de saúde em geral, e dos médicos em particular, para que melhor possam desempenhar aquilo que tão bem sabem fazer – cuidar dos doentes!”