A dor é uma experiência sensorial e/ou emotiva que se associa/assemelha ao dano de tecidos. Desta definição, abrimos um leque de entidades mais ou menos orgânicas que podem, em determinadas circunstâncias, encerrar um punho de dor no indivíduo particular. Percebemos, então, que o sintoma “dor” pinta na sua nuvem impalpável uma miríade de determinantes conceptuais que o alargam num espectro ora facilmente restrito, ora perfeitamente ambíguo.

O dano tecidual, expoente idealmente mais concretizável e bem definido, turva-se no percurso para o dano neural periférico (mas que, ainda assim, acomoda características ímpares que o permitem julgar de antemão), ganhando a mais ofuscante névoa na nociplastia. Este termo procura expressar a indelével e inexacta nascente de uma marca neurológica central de dor, sem identificável par nóxico nos órgãos, tecidos e nervos do indivíduo em questão. Nesta tão misteriosa entidade álgica, albergamos os princípios diagnósticos de fibromialgia (ou, melhor dizendo, síndroma fibromiálgica), dor regional complexa, dor visceral funcional, etc. Compreender este emaranhado permite focalizar não só o raciocínio médico, mas também enraizar o entendimento necessário para desmistificar, no doente, o seu ideal de uma vida livre de dor.

A dor tem uma esfera psicossocial, que pode facilmente inverter algum do sucesso terapêutico prévio. Por outro lado, nem toda a dor é merecidamente alvo de determinismos terapêuticos (que também poderão ter repercussões), sobretudo quando a causa subjacente à dor é fugidia ou, por outro lado, persistente, sem um outro tratamento de base. É certo que a dor, quando cronificada, ganha tonalidades próprias, com circuitos de aferências e eferências que a automatizam além do dano somatossensorial.

Muitas vezes, descreve-se esta dor, crónica, como doença. Mas a dor, seja ela qual for, parte como um sintoma de algo, terá sempre um primordial laivo de mensageiro. Por essa razão, calar desenfreadamente a dor, sem respeito ao seu papel protector e sinalizador de maleita, com escaladas terapêuticas pré-feitas, é prejudicial no longo prazo. Tratar uma dor abdominal de uma gastroenterite difere de tratar uma dor de cabeça, difere de tratar uma dor de uma entorse, difere de tratar uma dor de uma metástase óssea, difere de tratar qualquer outra dor. Os fármacos podem, em muitas circunstâncias, ser gémeos, mas o racional, o timing, a evolução e o prognóstico são marcadamente distintos. A medicina não é matemática e não são folhas terapêuticas; é uma arte que narra raciocínios estruturados em (re)conhecimento de padrões sindromáticos e do seu tratamento e perfil evolutivo. “Matar” por igual este mensageiro desvirtua o desfile anamnésico.

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Na patologia musculo-esquelética em particular, é importante reconhecer na dor um (quase) inevitável percurso, mais ou menos temporário e recorrente, na vida de um sujeito. O corpo envelhece, a máquina desgasta-se, e as micro-agressões continuadas por movimentos e gestos repetitivos ao longo da vida, assim como a inviolável praga da má postura, condicionam degenerescência articular e dos cordões tendinóticos, estruturas máximas da boa funcionalidade corporal. Daí se conceba que parte fundamental do tratamento de muitas das doenças peri-articulares (de músculos, tendões e ligamentos) beba da re-educação de comportamentos, implementação de práticas de exercício adequadas, perda ponderal, entre outros.

Abracemos este entendimento, médicos e doentes, de que a gestão de expectativas e a educação da população é o sulco áureo pelo qual corre o leito da boa prática da medicina da dor. Esperar uma vida isenta de qualquer dor é fantasmagoricamente irreal. A dolência caminha de mãos dadas com a dor; e a doença locomotora numa população sedentária e confinada muitas vezes a empregos funcionalmente reincidentes é de exorbitante frequência. Calibrar as atitudes e os esforços físicos individuais na medida da condição corporal vigente é imperativo.

Numa era de smartphones e realidade virtual, inteligência artificial e carros eléctricos, o (irrazoável) senso geral procura encontrar, na medicina, a evolução proporcionalmente exacta, com cura para todos os males, explicações para todas as condições e alívio para todas as vírgulas de dor. Desenganemo-nos – a medicina tem lacunas suficientes no seu cardápio, mas marcha exímia na sua debandada pelo descobrimento, carregando o bom senso de desbridar e resolver primária e (quase) completamente o grave, o típico, o essencial. A cultura da ausência de dor é uma cultura de ignorância.