Na sua viagem à Europa, o presidente Biden definiu o conflito que opõe a Rússia à Ucrânia e ao Ocidente como o centro quente da nova clivagem ideológica que divide o mundo em democracias e autocracias, numa espécie de reedição de The West and The Rest.

Talvez porque o nacionalismo seja hoje um conceito particularmente demonizado, também os contendores invocam razões ideológicas para um conflito que é, fundamentalmente, um conflito entre nacionalismos: o nacionalismo ofensivo russo pós-soviético, que vê na afirmação de Moscovo como um poder na Eurásia a defesa dos interesses nacionais do país, e o nacionalismo defensivo ucraniano que, paradoxalmente, a invasão russa de há um ano tem vindo a consolidar.

Assim, Putin quer concluir a obra da grande guerra popular de 1945 e exterminar os “neo-nazis” que ainda pululam na Ucrânia e, ao mesmo tempo, salvar o Ocidente da decadência; e Zelensky quer defender a democracia contra o “nazismo” de Putin e conta para isso com “o Ocidente”, também ele ameaçado pela autocracia russa. Este Ocidente das democracias é capitaneado pelos Estados Unidos, que patrocinam o nacionalismo defensivo ucraniano por razões de princípio e de legalidade internacional, por razões ideológicas, de luta contra as autocracias, mas também, ou sobretudo, por razões claramente enunciadas de interesse nacional e estratégico – com a ajuda militar norte-americana à Ucrânia a funcionar, declaradamente, como um “investimento” para “enfraquecer a Rússia” e neutralizar preventivamente “the Russian army and navy for next decade.”

Acresce que, se a distinção entre autocracia e democracia é, em princípio, clara e inequívoca, estas categorias têm vindo a revelar-se particularmente fluídas e manipuláveis. Tanto que, no Verão passado, o presidente dos Estados Unidos não hesitava em identificar uma ameaça interna à democracia norte-americana, uma ameaça autocrática, ou “semi-fascista”, protagonizada por mais de 80 milhões de eleitores, dispostos a votar no Partido Republicano de Donald Trump, numa eleição democrática.

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Lembro, a propósito, que foi sem grandes estados de alma que a Guerra Fria foi ganha pelas democracias anglo-saxónicas em aliança decisiva com algumas autocracias, entre elas a chinesa e a saudita (que, ao aumentar a produção do petróleo, arruinou, nos anos oitenta, a economia soviética). Lembro ainda que, apesar da demonização do nacionalismo, nação não é sinónimo de autocracia. Pelo contrário, nação e democracia são indissociáveis como pilares da modernidade política, como sublinhou Liah Greenfeld no seu clássico Nationalism: Five Roads to Modernity.

Globalização democrática

Em 2017, Dani Rodrik, professor de Economia Internacional em Harvard, escrevendo sobre a contradição entre a progressiva globalização económico-financeira e a continuidade da existência de Estados nacionais soberanos e democráticos, afirmava que os poderes discretos e não escrutináveis que regem um mundo sem fronteiras, tornam mais difícil o exercício da vontade popular e da soberania nacional. De resto, já antes, num livro de 2011, The Globalization Paradox: Democracy and the Future of World Economy, Rodrik desenvolvera mais demoradamente o tema.

Ao contrário de muitas profecias que, sobretudo a partir do fim da Guerra Fria, auguravam vida curta para o Estado e para as fronteiras, os Estados independentes continuaram e são eles que determinam ainda hoje a paz e a guerra, como é particularmente notório na invasão russa da Ucrânia.

Dentro da articulação geopolítica de um mundo de Estados soberanos – com mais ou menos soberania real – houve também uma prescrição ideológica, nascida dos conflitos do século XX e do seu resultado, de que a Democracia devia ser a definitiva forma legítima e legal de governo. Urbi et orbi, sem limites, sem restrições, na Ásia como na Europa, na África como na Oceânia.

O tema da globalização democrática tem uma longa história, que começa com a intervenção norte-americana na Grande Guerra; intervenção que determinou a vitória dos Aliados e fez dos Estados Unidos, para todos os efeitos, os principais, senão os únicos, vencedores. Ou, pelo menos, foram os norte-americanos os árbitros da Paz.

Foi o presidente Woodrow Wilson o grande campeão dessa democratização do mundo pós-guerra. Wilson era um ideólogo e defendia a ideia do Presidente Monroe de que a América, o Novo Mundo, era moral e politicamente superior ao velho mundo europeu. Wilson repetia que “the World must be made safe for democracy”, fazendo disso a sua missão e a missão da América. Wilson foi o primeiro presidente americano a viajar para a Europa, onde esteve entre Janeiro e Junho de 1919, para a conferência da Paz de Paris. Antes de voltar à América, declarou que era “missão dos Estados Unidos trazer a liberdade, a justiça e a humanidade aos povos menos civilizados do mundo”, povos esses que deviam “adoptar princípios americanos”.

Entretanto, na conferência de Versalhes, Wilson vetara uma proposta do Japão no sentido do reconhecimento da igualdade racial. Era da Virgínia, educado na Geórgia e na Carolina do Sul, e fora o primeiro sulista, desde a Guerra Civil, a ocupar a Casa Branca. Na presidência, opusera-se à integração racial: saneara altos funcionários negros, criticara a “Reconstrução” e manifestara-se contra o direito de voto dos negros. No entanto, insistia em democratizar, civilizar e humanizar a Europa e o mundo.

Parece-me interessante e importante este prelúdio como introdução ao problema das reais contradições entre valores; contradições que normalmente são esquecidas. Na democracia há, desde logo, um conflito entre dois conceitos – o conceito da tradição liberal anglo-saxónica, que vê a democracia sobretudo como a protecção constitucional e até pré-constitucional dos direitos e garantias individuais, da liberdade de expressão ao direito de propriedade; e o conceito rousseauniano continental da “vontade absoluta da maioria”, em que a maioria pode pôr e dispôr do poder.

Teoricamente, nada impede que estes dois conceitos se coordenem e convirjam, mas, na realidade, há todo um historial de diferenças. Enquanto os modelos inspirados na ideia rousseauniana da divinização da maioria e respectiva vontade geral tendem a interpretar extensivamente os poderes dessa maioria e a suprimir progressiva e expeditamente as oposições (veja-se o caso hitleriano e dos regimes comunistas na Europa Oriental), a tradição anglo-saxónia acautela essas liberdades. Ou acautelava, porque hoje, com o wokismo e as proibições e cancelamentos daí decorrentes, talvez também estas liberdades está em risco.

O que aqui quero sublinhar é que a democracia precisa da nação. Sem nação e sem identidade nacional como valores comuns identificadores de uma comunidade, torna-se muito difícil que o eleitorado não se fragmente por linhas de rotura.

Teoria e realidade

Temos como exemplo as dificuldades da consolidação da democracia em África. Num estudo de Guy Rossatanga-Regnault, na revista Afrique Contemporaine, de 2012, intitulado “Identité et démocracie en Afrique. Entre hypocrisie et faits têtus”, o autor concluía da análise das lutas políticas em África que, com raras excepções, os conflitos vinham da questão identitária, isto é, da concorrência permanente entre a identidade nacional e outas identidades – étnicas, regionais ou religiosas.

Quase todos os Estados do mundo começaram pela identidade tribal, clânica, social, religiosa. E nem sequer o argumento das fronteiras artificiais da colonização e da partilha de África é excepcional: os romanos não tiveram grandes preocupações identitárias quando dividiram administrativamente o Império; nem nenhum dos dirigentes imperiais ou imperialistas que lhes sucederam se preocuparam muito com o rigor histórico-etnológico dessas divisões, a não ser quando lhes facilitavam o domínio.

Também o modo geral de fazer países na Europa e nas Américas foi a guerra de independência contra o dominador e, a seguir, a guerra civil. O vencedor, assegurada a vitória, pacificou. Só depois, ao longo da História, as afinidades do lugar, da língua, das glórias e dos sacrifícios comuns foram fazendo, pela História e pela memória, a tal unidade nacional. Por isso também agora, na Ucrânia, é pelo sacrifício comum que a unidade e a identidade nacional têm vindo a consolidar-se.

A democracia, quer como protecção dos direitos e garantias individuais, quer como rousseauniana vontade absoluta da maioria, chegou plenamente no século passado. Durante séculos, o regime foi a monarquia, primeiro absoluta, depois liberal. E até muito tarde, quase até à primeira guerra mundial, o sufrágio era censitário e exclusivamente masculino.

Foi durante esses tempos que se foram formando, na Europa e nas Américas, as nações, as identidades, as lealdades, as comunidades. Sempre que outras identidades – por exemplo regionais – sobrevivem em democracia, há problemas de unidade nacional, como sucede com os separatismos catalão em Espanha, valão na Bélgica, ou do Quebec, no Canadá.

A maioria dos Estados africanos teve a sua independência no século XX, na vaga de descolonização iniciada pelos poderes coloniais europeus, na sequência do fim do mundo eurocêntrico, com a Guerra de 1939-45 e com a sua substituição, como grandes poderes, pelos Estados Unidos e pela União Soviética. Ingleses e franceses tentaram, uns por via económica, outros por via político-militar, manter uma influência e uma hegemonia neo-colonial. E, durante a Guerra Fria, o destino dos Estados africanos esteve também, em parte, condicionado pelos respectivos alinhamentos com as grandes potências (embora, a partir de Bandung, se procurasse criar uma terceira via, não alinhada).

A Guerra Fria permitiu, em África e no resto do mundo, a continuidade de Estados não democráticos, mas, com o seu fim, os poderes vencedores – os Estados liberais anglo-saxões e, entre todos, os Estados Unidos – quiseram, como o Presidente Wilson depois da Grande Guerra, voltar a impor o seu modelo político, a democracia multipartidária.

Com maior ou menor esforço, muitos Estados africanos fizeram pragmaticamente a adaptação, pelo menos na letra da lei, das suas leis fundamentais. Mas se a democracia foi, na Europa e nas Américas, um processo de longa formação, um processo de dois séculos, até que ponto era possível ultrapassar esses condicionalismos e atingir aceleradamente as condições nacionais e culturais necessárias à democracia?

Entender a questão é um passo fundamental para tentar lidar com o que é um problema vital em África e no mundo: encontrar uma forma estável, justa e pacífica de institucionalizar a soberania nacional e popular. Soberania que, também na Europa e nas Américas, parece agora ser, cada vez mais, a melhor forma defender os valores do Ocidente contra as manipulações das vanguardas esclarecidas.