Democracia é um conceito larguíssimo. Além de uma conceção relativa ao modo de designação dos que exercem o poder (forma de governo), figura e reconfigura uma atitude de crítica, de dúvida, de análise ponderada de dogmas e crenças.
Modalidades axiais dessa atitude são a filosofia, a comédia, a sátira, a liberdade de imprensa, a constituição sistemática de contra-poderes: presenças que assinalam um perpétuo questionamento. A exuberância de sentidos não lhe tira nem poder nem grandeza.
Historicamente, viveu e morreu múltiplas vezes. É contemporânea da “lógica da igualdade”, que não é uma exclusividade europeia. Foi inventada enquanto ia vivendo e morrendo, o que talvez explique por que motivo ainda hoje ela precise de estar sempre a ser fundada. Vive através do debate. Terá sido então o sistema político mais «natural».
Tornou-se uma criação europeia por volta do século V a. C., a partir de um discurso proferido no funeral de soldados mortos numa guerra com Esparta (Elogio fúnebre de Péricles). Entretanto, foi intensamente estudada e debatida (de Tucídides a Tocqueville, passando por Platão, Aristóteles, Cícero, Tomás de Aquino, Marsílio de Pádua, Maquiavel, Locke, Montesquieu, Rousseau, Kant ou Hegel…).
Criando-a, a Europa inventar-se-ia a si própria. Ambas se prendem, desde então, a um sentido forte e constitutivo de liberdade e de igualdade. O projeto europeu é o de um exercício de universalização da democracia, o de uma prática humana segundo a qual a liberdade e a igualdade constituem os operadores e os veículos mesmos da verdade inerente ao significado da humanidade.
Mas na história nada está assegurado definitivamente e a democracia em primeiríssimo lugar; ela possui também as suas patologias.
Fadiga, desgaste, erosão; impotência dos governos para decidir em tempo útil; dominação dos lobbies e corrupção; dominação aparentemente incontrolável de “técnicos” e “especialistas”; individualismo crescente que curva os cidadãos sobre os seus «direitos» e os remete para a passividade de uma mera busca de interesses próprios; teatralidade do político; visão do Estado marcadamente processual que a esvazia de conteúdo e a transforma no seu contrário; ausência de referências do passado.
Nem a oposição entre esquerda e direita, que é verdadeira na tradição e nos pensamentos, escapa a esta tendência de ritualização e ludificação. Acompanhada talvez da complacência pela culpabilidade assumida, a democracia começa a duvidar gravemente da sua viabilidade, caindo na difamação de si própria, na auto-acusação, como que desconfiando da sua história e do seu sentimento de identidade.
Vivemos debaixo de uma profunda “sofisticação dos políticos”, agravando-se a ligação entre política e não-verdade.
Se, como Platão dizia, a tirania é a ‘falsificação’ da palavra e a perversão da política, e a sofística a perversão da filosofia, então tirania e sofística formam um conjunto monstruoso.
É por isso que todos os tiranos, notava ele, precisariam dos sofistas («sátiros» e «centauros»).
Nos nossos dias essa “sofisticação” faz-se ideologizando a democracia. Até os tiranos preferem a democracia. Como as ideologias costumam ser assassinas, o efeito é similar ao de um narcótico que se usa para tranquilizar as consciências.
Estamos perante uma derrota do sentido que afeta o núcleo da democracia, induzida, imposta, consentida; não menos grave do que as violências visíveis.
Não podemos saber ainda que resultados irão produzir estes acontecimentos, mas podemos aprender com o passado a evitar a repetição de processos idênticos.
É sintomático que Nietzsche, «o filósofo do poder que pensou o poder sem se fechar no interior de uma teoria política», manifestamente insuspeito de preferências democráticas, veja na democracia o verdadeiro antídoto contra o alastrar do ‘socialismo’. Só «as instituições democráticas» poderiam conter «a antiga peste dos desejos tirânicos». Antecipa mesmo o advento «irresistível» da «democratização da Europa» – decorria, note-se, a segunda metade o século XIX.
Começando a perder terreno e acumulando fracassos, a democracia expandiu-se durante a segunda metade do século XX, triunfando sobre os totalitarismos. O século XX ficaria conhecido, aliás, como «século do triunfo democrático».
Num certo momento (anos 90, fim da URSS) imaginámos ter saído do horror, vendo na realização da democracia o horizonte irreversível da felicidade política. Hoje, três décadas depois, vemos que ela continua a ser reclamada por muitos, ao passo que para muitos outros significa um autêntico logro. Não lhes faltam propostas alternativas – todas elas permeadas contudo pela lógica da dominação (despotismo e arbitrariedade).
Platão e Aristóteles, primeiros filósofos políticos, tinham sérias dúvidas sobre a democracia. Queixavam-se de que as pessoas eram volúveis, ignorantes, indecisas, facilmente manipuláveis. Por isso, interessava-lhes menos saber «quem» governa do que «como» se governa. Viam o poder qualitativamente determinado pelo agir (práxis).
Ante a atração das ideias democráticas, Platão e Aristóteles pressentiam que um governante poderia facilmente ocultar o seu despotismo sob a máscara da democracia. O perigo diminuiria na exata medida em que a democracia exigisse simultaneamente regras, convicções e valores. E nem era preciso que todos os cidadãos fossem «homens bons», bastaria que fossem «bons cidadãos».
A ideia conserva toda a pertinência. Se a democracia de um país dependesse da perfeição democrática de todos os seus cidadãos, não haveria países democráticos. Mas nenhuma democracia pode subsistir, igualmente, se a maioria dos seus cidadãos não preferir um regime democrático (basta, aliás, uma ampla minoria de inimigos da democracia para fazer perigar a própria ideia de democracia).
Somos constantemente golpeados pela história que ignoramos. A democracia não é um conceito pronto a usar. Não é apenas uma solução, é também um problema. Temos de ir além da democracia formal, paralisante e regressiva. Estilizando-se, desvitalizando-se, esvaziando-se, em suma, “sofisticando-se”, a democracia favorece o alheamento e a passividade bem como a nostalgia de governos autoritários.
Toda esta deliquescência excede o âmbito da política; tem raízes profundas na economia e na sociedade. É preciso passar do arbitrário possível ao necessário fundante. Criar valores. Compromisso, concertação e reconhecimento de conflitos são os valores que urge sustentar e fortificar, sob pena de cegarmos diante do arrastamento debilitado e inatrativo das nossas democracias.