Porque é que os nossos dirigentes políticos optam por obscurecer os factos, preferindo actuar no vazio da encenação e do contra-senso?

A pergunta que o instante político nos impõe terá sido feita pela primeira vez no século VI a. C., antecipando por inteiro o destino político da mentira. O episódio é descrito por Plutarco, biógrafo de Sólon, político e moralista grego, a quem Aristóteles imputa o aparecimento da democracia. Sólon, incrédulo perante as representações de Téspis, fundador do teatro, pergunta-lhe: «Não te envergonhas de mentir dessa maneira diante de tantas pessoas?». Téspis terá respondido que fora apenas um «jogo», feito «a modo de divertimento». Sólon, batendo então fortemente no solo com o bastão, terá exclamado que «louvando e aprovando tais jogos [feitos com a consciência de mentir] em breve os iremos encontrar nas nossas assembleias».

Não se enganou. Tornaram-se conhecidas as afinidades que o mundo político estabelece com o “parecer” e em que, patentemente, recolhe audiências e cotação bem mais elevadas do que sucederia através do simples “ser”. A teatralidade passou a confundir e a fundir todas as práticas de poder. A atracção quase hipnótica exercida pelo exercício do poder tornou-se mais forte do que qualquer elemento coercitivo, de controlo, moderação, contenção. É notório que os governantes vêem o seu sucesso cada vez mais dependendo da construção pública da aparência, empregando judiciosamente, sistematicamente, consistentemente, o «jogo da mentira».

O problema – para eles – é que a mentira é sempre derivada e parasitária – não dura para sempre (“tem perna curta”). Não é fundante nem vinculativa. O resultado, contudo, é o esvaziamento completo dos critérios que poderiam levar a distinguir entre o verdadeiro e o falso, entre os que “sabem” e os que “não sabem”; traçar uma linha divisória entre eles equivale a escolher entre o cinzento e o cinzento (o mau e o pior).

Perguntar-se-á, então, em que consiste exactamente a mentira? João Estobeu, um célebre compilador estóico do século V, oferece-nos nos seus Extractos (Eclogae) uma definição que sintetiza todo o pensamento da época: «Mentir não consiste apenas em dizer algo falso, mas em dizer algo falso com a intenção deliberada de enganar».  Haver ou não «intenção», «vontade de enganar», faz toda a diferença, nota ele. E explica porquê. «Mentir» (mentire) e «dizer uma mentira» (mendacium dicere) não significam o mesmo. Não se pode confundir um mentiroso (mendax) com um mero embusteiro, com alguém que apenas simula enganosamente (mentiens). Uma coisa é um erro consciente e voluntário, praticado por aquele que falseia o seu próprio pensamento, visando enganar; outra coisa é um erro puramente involuntário daquele que fala do que não é, ainda que nisso mostre até algum prazer.

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Não se mente por ignorância. «Quem mente não se engana, quer enganar; quem diz uma mentira, engana-se [apenas] a si próprio», dissera também Públio Nigídio, político e filósofo romano (contemporâneo de Cícero). Mais, «quem mente, engana tanto quanto pode» (qui mentitur fallit, quantum in se est). Não é, portanto, apenas o discurso que faz o mentiroso, é sobretudo a modalidade do discurso, a falsidade intencional. Vincando esta ideia, Agostinho de Hipona, nome que transpõe todas as fronteiras da Antiguidade, classifica como mentiroso todo aquele que tem «dois corações». Conhece uma coisa e diz outra. A locução dele vai contra o seu próprio pensamento: «diz deliberadamente uma coisa falsa com a consciência de enganar», «engana consciente e voluntariamente», «presta declarações falsas com a expectativa ou intenção deliberada de enganar», seja por «palavras», seja por «acções».

Mas a mentira pode ser dita em nome de um bem maior. A par da condenação mais intransigente (como a de Agostinho), desenvolve-se também a convicção de que, em determinadas circunstâncias – de legítima defesa própria ou alheia, de salvaguarda de segredos, etc. – é lícito (senão mesmo obrigatório) mentir. Exemplifica-no-lo a magnífica afirmação de Vladimir Jankélévitch: «Mentir aos polícias alemães que nos perguntam se escondemos em casa algum patriota, não é mentir, é dizer a verdade». Mentir, numa situação tal, seria «o mais sagrado dos deveres», explica o filósofo francês (de origem russa).

A afirmação remete-nos para um suposto direito de mentir, onde ecoa fundamentalmente a conhecida polémica entre Kant e Benjamin Constant. Num exemplo similar (um perseguidor injusto que interroga sobre o paradeiro da sua potencial vítima), Kant condenaria, sem hesitar, a resposta falsa. Em palavras actualíssimas, defende que «o direito nunca se deve adaptar à política», é antes «a política que sempre se deve ajustar ao direito». Não há excepções (as excepções tenderiam a tornar-se regra). O célebre filósofo rejeita toda e qualquer forma de comportamento casuístico. O dever formal de «veracidade» suplanta, em qualquer circunstância, o direito de mentir (mesmo por amor à humanidade).

Não é o que pensam outros filósofos. Desde logo Platão, o grande campeão da verdade, como se autojustificava o filósofo-rei. Não se assusta com a mentira, vendo nela um instrumento precioso a utilizar nos jogos políticos da cidade. É a chamada «nobre mentira». Em certas circunstâncias, «para benefício da cidade» («por causa dos inimigos ou dos cidadãos»), ela poderia ser «útil sob a forma de remédio». Numa analogia com a medicina (a possibilidade de um médico poder mentir visando resultados terapêuticos positivos), também os governantes poderiam mentir. Em ambos os casos, note-se, poderiam mentir por serem os únicos a conhecer a verdade dessa mentira – uma modalidade de mentira que admitiria, portanto, uma certa «mistura» com a verdade.

A partir de então, criou-se a ideia de que há certas mentiras que podem ser úteis, mentiras que beneficiam alguém e não prejudicam ninguém.  A ideia surge tematizada nos grandes oradores romanos e em alguns dos primeiros Padres da Igreja (primeiros teólogos cristãos). Cícero e Quintiliano, por exemplo, admitem um certo grau de humanismo na mentira («mentira honesta e misericordiosa»). Por sua vez, Clemente de Alexandria, para quem «a ajuda aos outros leva a fazer coisas que não faríamos senão para seu benefício», fala-nos de uma «mentira pedagógica». Orígenes, expressamente comprometido com Platão, retoma a ideia de remédio e defende uma «mentira piedosa». Para Hilário de Poitiers e João Crisóstomo «a mentira é um bem frequentemente necessário e a falsidade por vezes útil». Ou seja, para todos, pese embora um dever geral de não mentir, a prática concreta admite modulações de mentira em ordem a valores mais altos.

Nos dias de hoje, não poupando na dureza das palavras, Alexandre Koyré diz-nos que o homem sempre mentiu (mendax ab initio), especialmente na política, tendo ambas – mentira e política – a mesma fonte, a vida na cidade. Mentimos reiteradamente, seja por simples prazer de «dizer o que não é», seja como arma de defesa. «A mentira é uma arma», escreve este filósofo, nome de referência no domínio da história das ciências. «A arma preferida do inferior e do fraco (ao enganar o adversário – ou o mestre –, o fraco revela-se mais forte do que este), que, enganando o adversário, se afirma e dele se vinga».

Verdade ou mentira? Ontem, como hoje, quando o poder político colide frontalmente com a verdade, sabe-se de quem é fatalmente o prejuízo. Quem é o perito na superação ardilosa, maliciosa, enganadora da realidade. O transgressor da verdade. O demónio enganador não tem escrúpulos; dir-se-á que ele não veste apenas as cores políticas, mas o engano político é sem dúvida o mais perigoso. Ao dissipar as fronteiras do verdadeiro e do falso, remete qualquer possível distinção unicamente para a esfera do interior dos indivíduos: vigora a injunção da “opinião”. Sendo tudo opinião (crença elevada a certeza), está facilitado o caminho para a proliferação da mentira, a transformação dos “factos” em “opiniões”, cuja falsidade é impossível de demonstrar, ao contrário daqueles.

Quem hoje procura dizer a verdade (veracidade) encontra-se numa posição mais difícil do que a dos prisioneiros da caverna de Platão.  Na ignorância em que viviam, tomavam as sombras por factos, regendo-se por estes; hoje, perante o grau corrente de difusão da negação deliberada da realidade, conhecer a verdade é quase uma impossibilidade, dado que o mentiroso encena todas as possibilidades, para estabilizar as consciências.

Todos os tiranos odeiam a mentira (só conhecem a verdade!). A distinção entre o verdadeiro e o falso é exclusiva das democracias. Talvez o simples facto de haver a consciência pública do problema abone a favor da nossa democracia. O anelo de esperança que a todos une denota certamente uma ligação à verdade. Viver sem referências à verdade, seria como querer tornar habitável um deserto – uma impostura. Como diria um filósofo, a verdade é tão excelente que mesmo aqueles que nela não acreditam gostariam que fosse verdade.