Tudo serve para estar triste. Uma perda. Um pensamento, mais ou menos fugaz. A forma como nos comparamos com os outros e nos sentimos a perder. Uma desilusão. Um olhar cheio de espinhos. Um livro, depois de folheado, que nunca nos abriu. O esquecimento. Algum medo aborrecido. Um comentário parvo que nos feriu ferozmente, mesmo que seja de raspão. Um sonho mal enjorcado. Uma coisa pequenina que veio à ideia. A memória do que nunca se viveu. Pensamentos de má reputação. Uma derrota. A preguiça que não prescreve. Um segredo. A intimidade quando se casa com a estranheza. A escuridão; sempre que não se afugenta numa história. Um desassombro. O chão, quando estremece, e nos afasta do caminho. Um amor engripado. Meia dúzia de palavras acrescidas ao que nunca se disse. E tantas, mas tantas, coisas mais, que tudo serve para estar triste.
É fácil estar triste quando somos tão inacreditavelmente sensíveis. Tão intuitivos. E tão inteligentes. É fácil que, por pequenina que ela seja, alguma coisa nos toque e nos remexa. E que isso nos turve, por momentos. E nos magoe.
E embora seja fácil estar triste, tudo se passa como se a tristeza nos lavrasse por dentro. E desafiasse, de seguida, a ir. A reagir. E a medrar.
Todos crescemos com as pequenas coisas que nos fazem estar tristes. Porque elas nos puxam, de supetão, para pensar. E nos obrigam a crescer. E é porque estamos tristes e falamos de todas essas pequenas coisas, que descobrimos que a tristeza nos traz, também, as boas companhias. Feitas dos escutadores de tudo o que serve para estar triste que resistiu aos nossos pensamentos. E que, acolhido por eles, nos traz ao apego. E, logo a seguir, nos encaminha, quase de surpresa, para o entusiasmo. E só porque não fugimos delas nos tornam mais fortes.
A capacidade para estar triste não nos empurra para a depressão. A depressão é uma solidão atrás da outra quando descobrimos que tudo o que serve para estar triste serve, também, para nos lembrar que não pensámos as nossas pequenas dores e as deixámos devolutas. E que são essas coisas que servem para estar tristes que nos recordam que não temos quem olhe por nós. E nos acolha. Como hóspedes, que seja. E nos faça sentir, mesmo que seja de passagem, brevemente entendidos. Fugazmente acompanhados. Mas, por tristes que estejamos, levemente aconchegados.
Eu acho que há uma espécie de depressão sem depressão em todos nós. Que se faz de tudo o que serve para estar triste e que, por algum motivo, fugimos de pensar. E por todos os silêncios sobre todas essas pequenas coisas que guardamos para nós e que, por qualquer motivo, não trouxemos até aos outros. E nos faz alimentar o equivoco que tudo o que serve para estar triste serve, também, para estar sozinho, ao mesmo tempo.
Mental é uma secção do Observador dedicada exclusivamente a temas relacionados com a Saúde Mental. Resulta de uma parceria com a Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento (FLAD) e com o Hospital da Luz e tem a colaboração do Colégio de Psiquiatria da Ordem dos Médicos e da Ordem dos Psicólogos Portugueses. É um conteúdo editorial completamente independente.
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