A pandemia trouxe-nos a saúde mental como um assunto com relevância pública. Multiplicaram-se as pessoas que passaram a partilhar dos seus episódios mais dolorosos e mais sombrios. A saúde mental passou a ser um ponto de passagem nos mais diversos discursos; desde os responsáveis políticos às empresas ou aos pais. E a forma como muitas organizações passaram a disponibilizar apoio psicológico aos seus funcionários banalizou-se e passou a ser um factor de diferenciação e, até, de orgulho institucional. Mesmo que muitas delas, diga-se, continuem a lidar com os seus colaboradores como se fossem “pouco pessoas”, usufruindo de menos das suas singularidades em favor de objectivos comuns. Ou promovendo climas de trabalho onde as picardias, os melindres e as avaliações com “agendas ocultas” são, por vezes,  mais próximos do bullying e do assédio moral que da saúde mental.

A saúde mental não se mede pela frequência com que se fala dela. Nem pela forma como se banaliza o recurso ao apoio psicológico. No “final da linha”, a saúde mental avalia-se pelo jeito como pensamos sobre nós, as pessoas, a vida e o próprio pensamento. Como transformamos tudo o que de único nós temos numa singularidade que se assume com transparência, espontaneidade e autenticidade. A bem da verdade da relação connosco e do bem que isso nos traz à relação com os outros. E “avalia-se” pela forma como reclamamos ser devolvidos à inteligência e à sensibilidade que temos – resgatando a humildade, a gratidão, o orgulho e a capacidade de aceder à culpabilidade – e a transformamos em empatia, compaixão, entusiasmo e esperança. A saúde mental não se traduz em narcisismo. E aos olhos dela, os outros não servem para que passemos a vida a afirmarmo-nos, vaidosa e vitoriosamente, sobre eles, mas para que, com a sua ajuda, nos tornemos pessoas melhores. Ou seja, quem não aprende com a vida e não transforma essa sabedoria num instrumento de interpelação e de mudança pode falar muito de saúde mental mas, de cada vez que o faz, ilude-se. E afasta-se dela.

Será, depois disto, que na relação connosco, com aquele que será o nosso amor, com os nossos filhos ou com a nossa família seremos tão íntimos como devíamos da saúde mental?

Será que na forma como deixamos à vida a iniciativa das nossas escolhas, ou no modo como nos encolhemos quando se trata de termos voz, ou não fazemos questão de ser cuidadosos, leais e bem educados, somos – quase sempre – bons exemplos de saúde mental?

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Será que quando se trata de reclamarmos pelo bem dos outros – porque aos olhos da saúde mental, quando os outros são “os outros”, ou quando os tomamos como estranhos e, de forma paranoide, os elegemos como os obstáculos que nos impedem de  conquistar aquilo que somos, apesar deles serem partes de nós e da descoberta do que podemos ser – seremos, sobretudo para os nossos filhos, o melhor exemplo de saúde mental?

Será que quando fazemos por ignorar os princípios e nos rendemos à notoriedade, ao imediatismo ou à vaidade, ou à ganância e ao poder, e nos esquecemos da filosofia como a arte e a matemática do pensar e da política como um caminho amigo do carácter e do futuro, seremos o melhor exemplo de saúde mental?

Será que quando somos inclementes com os erros e com as falhas, e tomamos as fragilidades como fraquezas; ou quando nos relacionamos com os mais frágeis com comiseração, será que aceitamos que pensam, que sentem, que vêem para lá das nossas falsidades e (mesmo que, por elegância ou por acanhamento, se calam sobre elas) será que acreditamos, assumidamente, que eles nos acrescentam sempre mais um bocadinho e, no meio de tantas omissões, será que seremos o melhor exemplo de saúde mental?

Será que quando o mundo, de forma enfadonha, convive com a forma como as pessoas vão sendo divididas entre os bons e os maus, e alimenta, por omissão, os discursos do ódio, as “exclusões” e os delitos de opinião, e quando convive com a manipulação como se se tratasse de mais um episódio viral diante do qual, como maioria silenciosa, nos deixamos ir, seremos o melhor exemplo de saúde mental?

Será que, quando o nosso contacto com a sensibilidade e com a beleza rejeita, quase a todo o momento, a amabilidade da vida para connosco – e nos assumimos como vítimas de rotinas que nos devoram – e nos entregamos ao silêncio daquilo que sentimos, seremos o melhor exemplo de saúde mental?

Não, não somos todos doentes mentais! Mas, por mais que falemos e falemos dela, não somos os melhores exemplos de saúde mental. Mentimos sobre a saúde mental quando falamos dela sem nos pensarmos a nós. E que desperdício que isso é!

Mental é uma secção do Observador dedicada exclusivamente a temas relacionados com a Saúde Mental. Resulta de uma parceria com a Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento (FLAD) e com o Hospital da Luz e tem a colaboração do Colégio de Psiquiatria da Ordem dos Médicos e da Ordem dos Psicólogos Portugueses. É um conteúdo editorial completamente independente.

Uma parceria com:

Fundação Luso-Americana Para o Desenvolvimento Hospital da Luz

Com a colaboração de:

Ordem dos Médicos Ordem dos Psicólogos