Começou Maio e, na madrugada primeira sexta-feira do mês, seis homens atacaram imigrantes no Porto. As informações recolhidas indicaram que os atacantes estavam associados ao grupo 1143, encabeçado pelo supremacista branco Mário Machado. Parte dos agressores já tinha estado envolvida em outros dois ataques ocorridos pouco antes. A PSP apresentava, no início da primeira semana do mês, poucas dúvidas de que o ataque teve motivações racistas, provavelmente porque uma das vítimas chegou a afirmar que foram proferidos insultos racistas e xenófobos. Já a PJ apresentou a hipótese de ter sido um crime de ódio, enquanto alguns moradores do Bonfim e comerciantes consideraram ter sido um ajuste de contas, referindo o aumento do número de assaltos em freguesias como Bonfim.

No fim de tudo, o suspeito detido, logo no dia 6, confessou que confrontou fisicamente imigrantes marroquinos e argelinos (ao que se sabe), por se ter sentido revoltado perante as suas atitudes antissociais para com os portugueses. Apesar de o racismo, o ódio e a xenofobia fazerem parte dos motivos subjacentes ao ataque, os seus autores não podem isentar-se de punições e reprimendas em qualquer sociedade minimamente civilizada. Não faltarão, nesta sociedade de multiplicidade de critérios, os habituais comentadores, vereadores, ativistas e “cientistas sociais” para ignorarem ou mesmo condenarem os relatos de alguns dos moradores das freguesias do Porto, nomeadamente da parte oriental da cidade, que devem estar quase a perder a paciência para com o número crescente de crimes contra a sua integridade física e as suas propriedades. Ainda para mais porque a frequência desses relatos coincide (ao que parece) com o aumento do número de estrangeiros na cidade do Porto (que mais do que duplicou, segundo o jornal Público). Moradores esses que sentem a necessidade de dizer que não são “racistas” antes de manifestarem a sua liberdade de reclamarem do Estado a que a sua casa, a bela cidade do Porto, chegou. Um afirma que estava “há mais de seis meses neste medo, neste terror, que somos assaltados em pleno dia com facas e martelos”. Outro admite que não volta a sair de casa depois das cinco horas da tarde e que acha que há uma falta de polícias.

Como de costume, comentaram aqueles que reconhecem o problema, aqueles que identificam parte do problema e que fogem ao problema. O presidente da Câmara Municipal do Porto, Rui Moreira, não hesitou em referir-se às agressões como um “crime odioso”, mostrou confiança depositada na polícia e criticou a Agência Para a Integração de Migrantes e Asilo (AIMA), tendo-a considerado inoperante. Mariana Ferreira Macedo, a vereadora social-democrata, sublinhou o “aumento gradual da criminalidade e sentimento de insegurança” no Porto e apostou também na validade da hipótese segundo a qual os atos terem sido um “ajuste de contas”, um reflexo da descrença na justiça e do impulso para se fazer “justiça com as próprias mãos”. Igualmente, não aceitou que se diga que Portugal é um país racista e apontou a inexistência de uma “estratégia e de políticas de imigração”, o que está na origem de uma crença generalizada na possibilidade de tudo e de mais alguma coisa e de “fronteiras escancaradas”.

Por sua vez, o vereador socialista Tiago Barbosa Ribeiro não se identificou com aquilo a que se referiu como uma atribuição de pessoa para pessoa de responsabilidade e sugeriu que o “acto violentíssimo” fosse simplesmente condenado.

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Maria Manuel Rola, a vereadora do BE, acusou Rui Moreira de não ter feito tudo aquilo que estava ao seu alcance em relação ao problema da imigração ou de problemas resultantes da imigração, aludindo à recusa do movimento de Rui Moreira na aprovação de duas políticas públicas: a implementação de um plano de integração de pessoas migrantes em 2022 e a criação de um conselho municipal para as comunidades migrantes. Rui Moreira respondeu com a referência aos já existentes projectos de mediação cultural, serviço municipal de atendimento para pessoas migrantes e programa de empregabilidade para essas pessoas. Quando o gabinete de comunicação de Rui Moreira foi contactado pelo jornal Público, especificou que o município também promove, desde 2021, o projecto Porto 4 All, destinado à integração de migrantes no mercado profissional. Houve também aqueles que acusaram Rui Moreira de condenar os ataques com um “mas”, aproveitando para o comparar com André Ventura, um dos que menos se resigna com, no nosso país, a acumulação de evidências da desumanização e com a perda de prestígio de Portugal gerido por uma administração pública displicente com a regulação dos fluxos migratórios.

Qual foi a indelicadeza de Rui Moreira? Ter defendido que a AIMA não está à altura das funções a que foi proposta (regular a imigração, prevenindo o mais possível a prática de atividades delinquentes e criminosas por imigrantes, nomeadamente os provenientes de países de fora do Espaço Schengen). Ter defendido que o homicídio de um imigrante por inspetores do antigo Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) e que a demora nos atendimentos e nas atribuições de autorizações de residência foram problemas verdadeiros que, apesar disso, levaram a que o governo tivesse tomado decisões irrefletidas para reformar (ou revolucionar) parte da administração pública. E qual foi a indelicadeza de André Ventura? Ter dito que há “um problema sério na Baixa do Porto denunciado por comerciantes relacionados com alguma criminalidade perpetrada também por imigrantes argelinos e marroquinos”. Ter afirmado que existem “dezenas de pessoas a viverem nas mesmas casas” e que há (pelo menos) um partido com assento parlamentar a denunciar estes problemas. E o próprio Passos Coelho, outrora portador de uma “voz reformista” e de um “apego às liberdades individuais” (nas palavras de Manuel Carvalho, jornalista do jornal Público), não escapa ao martelo dos que insistem na racionalização do tabu da imigração e da sua relação com a segurança. O ex-primeiro-ministro terá dispensado a menção a trabalhos científicos cuja consulta e divulgação implicariam supostamente a conservação do hábito da dissociação entre imigração e segurança.

O Presidente do Observatório de Segurança Interna recusa-se a responder, de forma satisfatória, à seguinte pergunta: a criminalidade está a aumentar entre a comunidade imigrante? Admitiu, em declarações à RTP, que “a haver (criminalidade entre a comunidade imigrante) será algo residual” e estará relacionado com “o aumento proporcional dos próprios em território nacional”. O mínimo de curiosidade, curiosidade essa que pelo menos um jornalista da RTP manifestou, levaria a perguntar o seguinte: porque é que a categorização dos autores dos crimes segundo a nacionalidade não é feita? O Presidente do Observatório de Segurança Interna responde que há “directivas superiores a pedir que isso não aconteça”, incluindo “um documento da Presidência do Conselho de Ministros que pede objectivamente aos órgãos de polícia criminal que omitam essas informações e até à própria comunicação social”. Será que estou a ser excessivamente mesquinho quando vejo nisto algo de muito estranho e obscuro? Como se não fosse suficiente, a Comissão para a Igualdade e Contra a Discriminação Racial (CICDR) recomenda, aparentemente sem nenhuma vergonha, que não se façam referências a nacionalidade ou etnia na comunicação social quando de trata de notificar ou de descrever actos ilícitos. Esta mistura de uma obsessão em ocultar informações elementares sobre os autores de práticas criminosas e a condenação rápida e aparentemente inevitável de todos aqueles que não abdicam de falar numa associação entre imigração e perda de segurança (que pode não ser necessariamente equivalente a um aumento da criminalidade) faz-me lembrar um conceito que o Mathieu Bock-Coté utiliza na sua obra Le Totalitarisme Sans le Goulag (O Totalitarismo Sem o Goulag): o “regime diverso”.

Convém estar atento. E, para o bem de todos, há quem o esteja. Tem de haver pelo menos algum acontecimento que produza um ponto de viragem na forma como encaramos a imigração em Portugal e nos outros países europeus. Um desses acontecimentos foi, segundo o sociólogo canadiano Mathieu Bock-Coté, o observado, em Maio de 2022, no Estádio de França (Stade de France), durante a final da Liga dos Campeões entre o Liverpool e o Real Madrid. Assim como em França, poderemos estar sob a égide de um “régime diversitaire” (“regime diverso”) ou mesmo de uma “utopie diversitaire” (“utopia diversa”) que, repentinamente ou no decurso do tempo, deixa de conseguir “esconder o colapso de uma sociedade” que acabou por se traumatizar com determinados níveis de diversidade e que se incapacitou de qualquer tentativa de dissociar várias notícias que, conjugadamente, se tornam numa “delinquência conquistadora”.

A realidade não é composta apenas por mensagens de ódio e agressões pavorosas da autoria de supremacistas brancos e nacionalistas que nunca se conformaram com as várias evidências disponíveis de que pessoas de várias raças, etnias e continentes conseguem assimilar-se ao país que dizem proteger. O império ultramarino português comprovou a possibilidade da adesão a uma cultura comum à qual subjaz uma sociedade equilibrada e minimamente orientada. A realidade – e é isto que o nosso regime diverso não reconhece ou finge de conta não reconhecer -, também é feita de bandos de delinquentes, ora dos centros das cidades ora dos subúrbios (como se verifica normalmente em França), provenientes da imigração que nos incomodam e nos perturbam. A nós, enquanto espetadores, que somos agredidos, roubados e que fazemos alterações significativas à nossa rotina para nos acomodarmos às novas condições do nosso bairro, da nossa freguesia, da nossa cidade, do nosso país. Enfim, da nossa casa.

Apesar de ainda não ser tão evidente e rotineiro em Portugal como o é em países como a França, a Alemanha e a Suécia, o nosso país também deve estar preparado para algo análogo à “nouvelle banalité française” (a “nova banalidade francesa”), que seria a “nova banalidade portuguesa”. Esta corresponderá a ataques entre imigrantes que se dedicam à actividade criminosa, contra comerciantes e residentes pacíficos e às sucessivas respostas odiosas de supremacistas brancos confiantes da indispensabilidade da violência como meio de livrar a nação de estrangeiros mais ou menos dignos de serem titulares da cidadania portuguesa. Tudo isto é um espelho de ampliação do todos os conflitos culturais já existentes. O regime diverso, conceito de Bock-Coté, insiste que as pessoas continuem em estado de negação, não temendo a chegada da crença generalizada numa mentira. Se algum académico, político ou outro elemento da sociedade civil ousa falar em imigração e apontar este fenómeno como fonte de alvoroço (quando isso não for um silogismo) e não apenas de enriquecimento, é acusado de dar importância insuficiente a certas informações, a desviar-se de problemas de organização, de planeamento ou de privação económica. E, para mais, pode ser acusado, nas palavras de Bock-Coté, de praticar uma “essentialisation de la délinquance” (“essencialização da delinquência”), ao invocar as nacionalidades dos autores dos crimes e, consequentemente, de apontar ligações desnecessárias e grosseiras. É a dissolução da história da convivência diversitária que encoraja o regime a condenar à vingança pública aqueles que têm coragem de dizer que a realidade existe. Os cidadãos, os espetadores perplexos e coléricos, acabam por pagar quando confrontam a institucionalização da mentira “como modo de gestão do regime diverso”, regime esse que, mais cedo ou mais tarde, cai.

Associar os recentes níveis de imigração, possibilitados pelas alterações à Lei da Nacionalidade e pelo desmantelamento do SEF, ao aumento da criminalidade ou à hesitação crescente em proteger e promover a identidade nacional é algo sem qualquer fundamento científico? Será que pessoas como Passos Coelho, André Ventura, Rui Moreira, os militantes do Chega, do CDS, do PSD devem ignorar o conteúdo de obras como Mass Migration in Europe: A Model for the U.S?, de Robert Spencer e os trabalhos compilados (e, parte deles, da sua autoria) pelo sociólogo Ruud Koopmans, que podem ser consultados, por exemplo, na obra Social Cohesion and Immigration in Europe and North America: Mechanisms, conditions, and casuality? Porque é que nós, cidadãos, eleitores e futuros eleitores haveríamos de ignorar o que já foi experimentado noutros países? Sejamos racionais. Não vociferemos sobre “racismo sistémico” ou “racismo estrutural”. O realismo e a compaixão exigem outra atitude e outra forma de pensar.