Anda por aí um debate sobre o nome a dar ao museu que se pretende fazer em Lisboa sobre as viagens de Quinhentos. Perante a ideia de que se chamasse “das descobertas” ou “dos descobrimentos”, a polémica instalou-se.

As viagens tituladas pela coroa portuguesa, desde o ataque a Ceuta, e com exceção das desertas ilhas atlânticas, foram quase sempre operações de conquista, com toda a violência que isso à época implicava. É sabido que Afonso de Albuquerque foi um guerreiro sanguinário e que os outros capitães das frotas e das naus não devem ter sido muito mais meigos. Pode imaginar-se o modo como foram tratados os árabes, os negros, os índios, os indianos e outros asiáticos que procuravam fazer frente aos seus desígnios, nessas expedições para encher alforges e porões, tendo como alibi ideológico a expansão da cruz e a concretização da vontade do soberano. A captura e uso de escravos, tal como a posterior exploração do trabalho forçado, fizeram parte integrante da empresa ultramarina e Portugal foi dos Estados europeus que prolongou essas selváticas práticas até mais tarde. O nosso atraso histórico na relação com as colónias é, aliás, recorrente: um século depois, quando já quase toda a Europa tinha descolonizado, por cá ainda pateticamente se falava do “Ultramar” e do “Portugal do Minho a Timor”.

O Estado Novo, prosseguindo, aliás, a velha narrativa colonialista republicana, pretendeu dar a essa aventura além-Europa uma aura de santidade civilizacional. Usou “Os Lusíadas” como bíblia apologética e capturou de modo oportunista, em favor de um patriotismo de regime, essa parte da nossa História, consagrando-a, em forma de caricatura épica, em textos e momentos hagiográficos, de que a Exposição do Mundo Português, ecoando modelos alheios, terá sido o mais bizarro exemplo. A minha geração deve ter sido uma das últimas a ser fustigada apologeticamente por essa historiografia gongórica, de que muita da estatuária que por aí anda, espalhada por rotundas e outros santuários públicos de arte urbana, é aliás tributária.

A notável aventura marítima portuguesa foi o que foi. E foi fantástica no que representou de inventividade e ousadia, marítima e não só. Algum mundo credita-nos isso, embora talvez muito menos do que deveria, à luz do imenso esforço feito por um pequeno povo, numa ambição quase planetária.

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Não tem o menor sentido – e releva de uma arrogância histórica por parte da geração atual, que parece achar ter o direito de poder julgar as anteriores – estar a fazer juízos de valor sobre atos cometidos à luz de conceitos e princípios que estavam muito distantes dos nossos de hoje. Uma coisa é podermos reagir com horror a crimes cometidos na época contemporânea, quando já vigoravam valores civilizacionais muito próximos dos atuais – como os assassinatos em massa promovidos pelos nazis, ou os crimes do colonialismo mais recente, já dentro do século XX. Outra coisa é andar a escolher seletivamente episódios ou práticas de um passado distante, assumindo culpas coletivas (repito, à luz dos princípios de hoje) por atos como a inquisição, o colonialismo ou a escravatura. É que, por essa ordem de ideias, estaremos, um destes dias, a pedir contas a alguém pela brutalidade das invasões bárbaras, antes da nossa nacionalidade. E esses ciclos nunca terão fim.

Voltemos às descobertas. Para Portugal, entidade invasora, detentora do olhar que enformou a sua perspetiva de promotor desses atos, é óbvio que se tratou de “descobertas”, porque essas terras e gentes foram uma completa novidade, nalguns casos um “achamento”, como se disse da chegada ao Brasil. Povos que o poder português dominou – à força, claro, porque, que eu saiba, as operações de conquista foram sempre feitas pela violência, às vezes extrema e impiedosa. Importa reconhecer isso, com toda a frontalidade, agora sem ter já de recorrer à ganga apologética que o discurso historiográfico da ditadura nos impôs, mas igualmente sem prescindir, nem por um segundo, de relevar o caráter fantástico e pioneiro da empresa dessas navegações, no que ela teve de avanço para o conhecimento e abertura do mundo.

Somos, como povo, o somatório dos vários segmentos sucessivos da nossa História. No terreno colonial, outros a sofreram para que, deste lado, o país de então pudesse beneficiar – na exploração dos recursos económicos e humanos, ignorando e espezinhando as identidades dos povos colonizados, com práticas racistas em que o “outro” foi, muito frequentemente, apenas uma “coisa”. Nesse aspeto, podendo a colonização portuguesa ter tido alguns matizes próprios, basicamente ela seguiu um padrão comum aos restantes conquistadores europeus. Foi o que foi e assim deve ser estudada, entendida e exposta, com total transparência histórica.

Dificilmente, porém, conseguiremos consensualizar um discurso comum sobre a História. Aliás, não vejo qualquer vantagem nisso. No trabalho sério em torno do passado, importa apenas não esconder nenhum aspeto, devendo estar preparados para que essa leitura seja diferente, de acordo com experiência de cada lado. Por isso, exponhamos os factos, todos os factos. Depois, cada um que os leia segundo a sua perspetiva.

No que toca ao museu que se projeta sobre a aventura marítima e colonial portuguesa, e que entendo seria uma imperdoável tibieza política não concretizar, acho, sem a menor hesitação, que deveria ser um “museu das descobertas” ou “dos descobrimentos”, porque foi precisamente isso que, desde então, ficou consagrado na nossa memória coletiva, ao longo dos séculos. E, da mesma maneira, devemos aceitar, com toda a naturalidade, que, do lado de quem foi objeto da invasão brutal dos seus territórios e viu tomados os seus recursos, possa e deva ser feito um “museu da exploração colonial”. Essas são as duas faces da mesma verdade. Pretender a reconciliação dos olhares, hierarquizando-os sob uma narrativa única, é um artificialismo voluntarista que a nada conduzirá.

Embaixador