Um dia de 1997, em Lisboa, durante uma reunião do conselho de ministros, António Guterres deu conta da surpresa que tinha tido, numa sua recente visita à Polónia, ao constatar que todos os seus interlocutores locais estavam convencidos de que Portugal iria ser o país que mais dificuldades iria criar aos futuros alargamentos da União Europeia. E, voltando-se para o secretário de Estado dos Assuntos Europeus que eu então era, e que ali estava ocasionalmente por qualquer razão de agenda, alertou: “Espero que, em Bruxelas, os nossos funcionários clarifiquem bem a nossa posição”. Aquela perceção não era apenas polaca: muitos dos países do centro e do leste europeu estavam sinceramente convencidos que iriam encontrar em nós um grande obstáculo à sua pretensão de se juntarem à União.

A lógica dos interesses apontava, de facto, para que Portugal tivesse uma posição muito defensiva no tocante ao efeito, quer em matéria de fundos, quem em termos de vantagens competitivas, que a presença de um elevado número de novos parceiros iria implicar. Mas António Guterres via um pouco mais longe: o alargamento era um irrecusável objetivo estratégico da Europa “deste lado”, o qual, desde o final da Guerra Fria, entendia como imperativo conseguir dar resposta ao anseio de muitos Estados “do outro lado”, recém-libertos da tutela soviética, que pretendiam ancorar a sua liberdade e o seu desenvolvimento no quadro de um projeto que, durante décadas, lhes fora mostrado como paradigma de modelo exemplar de cooperação e de integração económica e, cada vez mais, de cidadania e de valores comuns, que os “critérios de Copenhague” haviam entretanto consensualizado.

O pragmatismo não é contraditório com a ética. Portugal não poderia recusar a outros aquilo que funcionara como reforço essencial do seu próprio projeto democrático e de prosperidade, para além de que a pressão para a inclusão dos novos Estados iria, com toda a evidência, tornar-se crescente. A política europeia de Portugal, com Guterres, tendo os interesses portugueses no seu centro, tinha como filosofia essencial a partilha sincera dos interesses europeus. No tocante ao alargamento, até ao termo do processo, o nosso comportamento iria ser exemplar – e os então candidatos são hoje, estou certo, as nossas melhores testemunhas.

Vem isto a propósito da Ucrânia. Na sequência da agressão russa, Portugal, em uníssono, manifestou uma reação de repúdio a esse inaceitável atentado à soberania de um Estado independente e com fronteiras reconhecidas, dando provas concretas de solidariedade e de empenhamento, em todas as instâncias e por todos os meios que pôde colocar à disposição, desde logo na oferta de grande apoio aos refugiados. Mas, igualmente, demonstrou-o na partilha plena das decisões no seio da NATO, da União Europeia ou nas Nações Unidas. Bem como na disponibilidade de meios materiais de diversa muito natureza. Sempre achei ridículo entrarmos no “campeonato” do grau de retórica adjetivada para denunciar a invasão e criticar Moscovo, mas, até aí, o governo português, ao que me lembro, não ficou mal “classificado”.

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Surgiu, entretanto, a questão de uma possível adesão da Ucrânia à União Europeia. Relevando de um lamentável desconhecimento da realidade, logo apareceram, em algumas capitais europeias, os defensores de um “fast-track”, de uma espécie de “via verde”, que permitisse que Kiev, saltando etapas, passasse, a breve prazo, a membro pleno da União. Entre nós, no comentário impressionista, emergiram também, por mimetismo, os promotores zelosos da ideia. Estar com o “l’air du temps” faz parte de um certo estilo de “informação”.

António Costa, desde o primeiro momento, teve a coragem de “deitar água na fervura” neste voluntarismo insensato, não se intimidando em dizer a verdade. Disse-a mesmo em Kiev, em face do presidente ucraniano, para óbvio desgosto deste. Ora um processo de adesão desta natureza não é equivalente à emissão de um cartão de sócio de um clube, em que os membros decidem dispensar de jóia e de alguns requisitos um novo candidato que se considera desejável que possa partilhar, com rapidez, o nosso convívio. Ser parte da União Europeia é ter não apenas a vontade, mas também as plenas condições, para poder cumprir com o cada vez mais exigente acervo legislativo, até para proteção do país candidato face à feroz competição que a exposição ao mercado interno comunitário implicará.

Além disso, que já não é pouco, alguma experiência mais recente, com as derivas negativas de alguns Estados, prova que é imperativo reforçar as exigências no tocante à observância estrita das regras democráticas e do pluripartidarismo, da separação de poderes e do respeito pela independência da justiça, das regras gerais do Estado de direito, da proteção da comunicação social independente e do respeito pelos direitos das minorias. Alguém que surja a afirmar que a Ucrânia, mesmo antes de ter entrado no atual estado de guerra, cumpria um mínimo destes critérios, não pode ser levado a sério. Vou dizer isto, medindo bem as palavras: a Ucrânia está ainda muito longe de poder vir a ser um membro da União Europeia e, mais do que isso, não é ainda claro que tenha condições para o poder vir a ser algum dia. É impopular dizer isto? Talvez, mas eu digo. E é preciso que isto seja dito.

Mas não tem a Ucrânia o direito de entrar num caminho de aproximação às instituições comunitárias? Claro que sim e tem, exatamente por isso, o direito de apresentar o seu caso e de vê-lo devidamente apreciado. E, por essa razão, por simpatia com esse seu legítimo desejo, devem ser dados todos os passos que sejam possíveis nesse sentido. Mas sem quaisquer pressas, que possam ser lidas como podendo estar a “queimar etapas”, porque o ambiente emocional, que o horror da guerra nos possa e deva motivar, não nos deve fazer esquecer que há outros Estados que, desde há vários anos, com grandes esforços de adaptação interna das suas estruturas, iniciaram um caminho de aproximação às instituições comunitárias que está muito mais adiantado, o que pode e deve justificar a sua entrada mais rápida.

Imagino que por essa razão, na declaração que hoje fez ao “Financial Times”, António Costa deixou o que pode ser lido uma crítica implícita à atitude da presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, que tem vindo a dar mostras de procurar um protagonismo institucional que, lamento ter de dizê-lo, não está a respeitar o equilíbrio dos tratados europeus. Tal como, aliás, acontece com a sua colega presidente do Parlamento Europeu, a presidente da Comissão parece deliberadamente querer esquecer que quem decide sobre as adesões à União é o Conselho de Ministros e os parlamentos nacionais da totalidade dos atuais Estados membros. A Comissão faz as suas avaliações e análises, mas são os chefes de Estado e de governo quem tem a última palavra. Ao proceder como procede, ao “pôr o carro à frente dos bois”, a Von der Leyen deve ser dito que deve ter consciência de que está a acicatar a potencial conflitualidade entre os Estados mais vocais e entusiastas, por razões de proximidade estratégica, com as ambições maximalistas de Kiev, e outros, nos quais Portugal se insere, que têm uma leitura mais serena e equilibrada do problema, sem que, nem por isso, se considerem menos empenhados na defesa do caso ucraniano. Até por uma razão simples, embora quiçá menos popular: defender o interesse da Ucrânia é, também, dizer-lhe a verdade.

Mas António Costa disse mais. Deixou implícito, como já antes o tinha feito, o interesse em se estudar, como Emmanuel Macron havia sugerido e o bom senso parece recomendar, a instituição futura de um espaço institucional intermédio, entre o estatuto de Estado terceiro e o de membro de pleno direito, por forma a criar um tempo de aculturação e de transição que, precisamente, possa aferir, à medida dos progressos alcançados, da possibilidade de o Estado candidato vir a obter uma integração plena, antes da conclusão da negociação dos 35 exigentes capítulos temáticos para uma adesão plena. E o primeiro-ministro português disse, além disso, algo também da maior sensatez, o facto de ser importante que a União Europeia se concentre, por ora e essencialmente, naquele que é um desiderato comum, sem a menor sombra de dúvida, sem incorrer em riscos de divisão, entre todos os parceiros comunitários: promover uma forte e empenhada ação de ajuda económica à reconstrução do país, à reforma das suas infra-estruturas, afetadas pela guerra. Essa, além da paz, que não é chamada para aqui, é a prioridade.

Volto ao ponto por onde comecei. Portugal, ao longo da sua história de presença na vida política da construção europeia, sempre revelou o maior interesse em ver as fronteiras da Europa comunitária abertas a todos os Estados que, exclusivamente à luz dos seus próprios méritos, revelem condições para poderem constituir como um valor acrescentado à expansão do projeto de liberdade, paz e desenvolvimento que subscrevemos, em boa hora, fez precisamente ontem 37 anos.

Não fazemos nenhum favor a ninguém ao proceder assim. Estamos apenas a atuar como um país que, ao longo do seu tempo democrático e com escassos sobressaltos nos vários ciclos políticos, tem do seu papel no mundo uma perspetiva solidária, o que já é uma marca e um orgulho da sua política externa. E que, nesse domínio, não recebe lições de ninguém. Nem lições, nem pressões.