Sinto que já fui salvo por diagnósticos. Vivesse eu noutro tempo ou noutro lugar e podia ter tido uma vida muito mais curta, sem estes diagnósticos que ma salvaram. Penso em duas ocasiões, pelo menos. Quando tinha seis anos parti a cabeça no Externato “O Cisne” na Amadora e valeu-me o diagnóstico de traumatismo craniano. Quando cheguei aos quarenta anos fritaram-se-me o entendimento e as emoções e valeu-me o diagnóstico de “depressão”. Sou grato, portanto, a todos os que me diagnosticaram e não quero arruinar-lhes o mister, mas deixem-me dizer-vos que a profissão do futuro é a do desdiagnosticador.
Vou tentar justificar que a profissão do futuro é a do desdiagnosticador. Tendo em conta que vivemos numa época de amplo crescimento de diagnósticos, uma procura pelo seu contrário tornar-se-á inevitável. As pessoas desejarão alguém que as possa livrar do que naturalmente se torna excessivo. Um desdiagnosticador terá um impacto grande e um valor em expansão. O desdiagnosticador é uma profissão com todo o futuro que podemos imaginar.
Não é só à minha volta que há pessoas a sentirem-se beneficiadas pelos diagnósticos que recebem. Sobretudo no omnipresente terreno da chamada saúde mental, gente liberta-se com diagnósticos de ADHD (no português, transtorno de déficit de atenção com hiperactividade), com diagnósticos de TOC (transtorno obsessivo-compulsivo), com diagnósticos de TBT1 ou TBT2 (transtorno bipolar tipo 1 ou tipo 2), com diagnósticos diversos de TEA (transtorno do espectro autista), e com diagnósticos de PTSD (no português, transtorno de stress pós-traumático)—isto só para dar exemplos que encham os dedos de uma mão.
Reparem: o desdiagnosticador não aparecerá como alguém que nega necessariamente a pertinência destes diagnósticos. O desdiagnosticador não se sentirá na necessidade de arrasar esta floresta de siglas, tenha ela crescido organicamente ou tenha ela sido plantada artificialmente. O vigor do desdiagnosticador não será, como agora se diz em tom acusativo, negacionista. Não. O desdiagnosticador será procurado sobretudo pelo seu poder sugestivo.
O desdiagnosticador dirá aos diagnosticados algo como: “Ok, reconheceste-te como hiperativo/obsessivo-compulsivo/bipolar/autista/traumatizado. E agora?” Será tão somente a sugestão de uma vida além dos diagnósticos que colocará os diagnosticados a sonhar. “E se houver um quintalzinho fora da casa da minha condição clínica?”, imaginará o diagnosticado, já embalado pelo poder de uma meiga utopiazinha. O desdiagnosticador não precisa de suprimir os zelos da saúde mental; só precisa de sugerir-lhe que prescinda aqui e ali da omnipresença que se tem esperado dela.
O desdiagnosticador poderá ser então um amigo inesperado da saúde mental, tão ocupada que anda a resolver grande parte dos problemas do mundo. Calculo até que a saúde mental começará a consultar ou mesmo recomendar os serviços do desdiagnosticador a alguma da sua clientela. Como quem diz: “Olhe, vou dar-lhe aqui uma sigla que lhe será útil mas passo-lhe também o contacto do desdiagnosticador porque errar é humano e uma segunda opinião não magoa ninguém”. Neste mundo futuro, o desdiagnosticador não precisa de ser um adversário da sempre pronta saúde mental.
O segredo do desdiagnosticador, deixem-me confessar-vos, está no meio da palavra que lhe dá o nome: o desdiagnosticador prescinde um pouco da gnose. O desdiagnosticador não é contra o conhecimento das condições que nos afectam mas sugere que outro mundo é possível. Quando fundamentamos a nossa vida nas certezas do nosso conhecimento, qualquer desconhecimento parece pô-la em risco. O desdiagnosticador triunfará num futuro em que não saber não ficará sob o monopólio do sofrimento.
Mental é uma secção do Observador dedicada exclusivamente a temas relacionados com a Saúde Mental. Resulta de uma parceria com a Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento (FLAD) e com o Hospital da Luz e tem a colaboração do Colégio de Psiquiatria da Ordem dos Médicos e da Ordem dos Psicólogos Portugueses. É um conteúdo editorial completamente independente.
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