Nas desimportâncias das nossas vidas está o fundamental da vida. Nestes dias de retiro, penso nos que sofrem. Imagino os modos de violência, as faltas de espaço, as faturas a pagar ou a receber, os empregos, a instabilidade. As faces imensas da pobreza, da exclusão, do abandono. Penso naqueles que cuidam de nós nos hospitais, nos que nos assistem e socorrem, nos que nos informam. E ainda também penso na desigualdade de condição e circunstâncias entre todos nós, os portugueses, e vou descobrindo transformações. Nos privilegiados, sinto a consciência do conforto, apesar da interrogação sobre o futuro que há de vir. Oiço agora expressões de misericórdia, conheço rituais de privacidade, desabafos de tolerância. Nasceu uma nunca imaginada intensidade de comunicação. Conversas ao telefone, sem pressa de desligar. Recados, mensagens, sinais de presença, na formal ausência. Usamos a primeira pessoa do singular, e apesar do universo virtual que nos vai devorando, ainda existe o gosto da viva voz.  O espaço da casa é metáfora para falar de amor, na descrição dos pequenos gestos. O discurso direto dispensa erudição, diz o simples correr dos dias, exprime a nossa humana fragilidade. A aparência perdeu significado, a vaidade não tem vez, o poder deixou de ser ambição. Na invenção de novos saberes, revelam-se habilidades, imaginações. Os mais velhos e os mais novos passam conhecimentos, técnicas e truques são trocas, na reinvenção do tempo que nos sobra. Assisto a uma desconhecida metamorfose do mundo.

Eu vinha por dois dias ao campo e por puro acaso acabei ficando, já duas semanas passaram. Admiro a natureza, cada manhã acordada de verde, a rebentar de folhas nos troncos ainda despidos, quando cheguei. Creio na obra perfeita da Criação, quando olho o desenho das nuvens, o recorte das árvores, a exuberância no colorido das flores. Dói-me o peso do espírito carregado dos noticiários, defendo-me da doença do medo e da ameaça, decido disciplinar-me para cuidar das plantas ou fazer arrumações dentro de casa. Até ao cair da tarde sou capaz de dispensar o vício de me sentar a ver as imagens das televisões, a ouvir as opiniões dos comentadores e as entrevistas em programas que já não são de auditório, a conhecer o enunciado de desgraças, solidões, adversidades. E então, no fim do dia, entro nos horrores da realidade.

Mulher de fé que sou, em tempo de Páscoa espero a Ressurreição. Não penso na invisível fronteira entre a vida e a morte, tão perto de mim desenhada. E porque a realidade é intemporal, guardo e aplico em mim a exortação de São Paulo, na primeira carta aos Efésios: “Tu que dormes, levanta-te do meio dos mortos e Cristo brilhará sobre ti.”

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