Depois de editar “Como Perder uma Eleição” de Luís Paixão Martins, espero que a chancela Zigurate edite agora a sequela “Como desperdiçar uma maioria absoluta” da autoria de António Costa. Num feito raro, António Costa conseguiu que um governo apoiado uma maioria parlamentar de um único partido terminasse precocemente, pouco mais de um ano e meio após a sua tomada de posse. Para que tal ocorra, numa situação política de domínio absoluto do executivo sobre todos os órgãos políticos, que numa situação destas ficam incapazes de lhe fazer frente, é preciso mesmo que o governo caia de podre, por dentro.

O que fica destes oito anos? Nada, ou muito pouco. O primeiro governo de Costa, apoiado na solução política da Geringonça, limitou-se a pouco mais que repor coisas que o programa de ajustamento anterior, como todos os programas de ajustamento do FMI em situações de crise em todos os países, teve de cortar. Arrisco-me a dizer que, mais cedo ou mais tarde, qualquer governo que se seguisse ao programa de ajustamento, havendo condições financeiras para tal, reporia o que Costa repôs. Essas reposições não foram, no entanto, acompanhadas de uma reposição dos níveis de investimento público necessários em educação, saúde, ensino superior ou infraestruturas. Algumas coisas foram repostas, principalmente salários dos funcionários públicos e pensões, mas em muitas outras coisas tal reposição nunca ocorreu. A diferença? Os primeiros são visíveis no imediato. O investimento público ou a falta dele só se vê nos médio e longo prazos. Infelizmente, António Costa, os seus ministros e conselheiros parecem não ter estudado, lido e acompanhado a investigação mais recente sobre os Estados Sociais modernos, que devem ser baseados numa lógica de investimento público, e não de subsídios, apoios e transferências directas aos cidadãos. Mas claro que a primeira lógica é muito menos eleitoralista que a segunda, principalmente se os eleitorados são míopes. Volvidos os primeiros quatros anos, António Costa pouco mais fez que liderar um governo de gestão quotidiana. Alguém se lembra de uma única reforma estrutural ou mudança de políticas públicas significativa e que fica para o futuro? Eu não me lembro.

António Costa limitou-se a gerir um orçamento, com pequenas alterações de um ano para o outro, ao sabor dos acontecimentos externos (ex. pandemia ou evolução do contexto económico europeu/global) ou de indicações tácitas provenientes da União Europeia. As falhas estruturais no Serviço Nacional de Saúde ou nas escolas e universidades, por exemplo, sempre foram visíveis, dando inclusive origem a inúmeras queixas de certos sectores ou classes profissionais, que rotativamente mostram o seu descontentamento nas ruas ou em greves. Ainda assim, a missão de Costa sempre foi mudar o mínimo possível para garantir que tudo fique na mesma. Fazer o mínimo possível para tentar conter o descontentamento das ruas portuguesas. A crise da habitação foi um gigante na sala em que os governos de Costa se limitaram a empurrar para a frente. Nos últimos anos, os cidadãos nunca estiveram propriamente satisfeitos, mas como dizem os Portugueses tantas vezes, “vai-se andando”.

Este foi o grande desperdício de António Costa. Oito anos de poder, uma maioria absoluta com margem para desenhar e aprovar políticas públicas de médio e longo prazo, e quase nada fica. Não deixa de ser irónico que o governo não caia por falta de apoio nas ruas ou dos cidadãos, mesmo que estes tenham repetidamente mostrado o seu descontentamento nas ruas. Não cai por políticas públicas impopulares, por estratégia política do Presidente da República nem por uma qualquer situação social dramática, como o estado da saúde ou da habitação. O governo cai porque vários dos seus actores – ministros, assessores, conselheiros, chefes de gabinete – se veem envolvidos em processos de corrupção e tráfico de influências. Afinal, é para isto que serve uma maioria absoluta?

Serei acusada de populista, mas recuso veemente tal rótulo. Primeiro, porque a palavra esvaziou-se de qualquer significado real, depois de usada e abusada como insulto político na última década. Segundo, porque, na verdade, creio ser profundamente imoral defender que devemos ignorar os piores vícios do nosso regime para o defender dos populismos e radicalismos. A maneira de defender o regime não é afirmar que falar de corrupção é uma “conversa de tasca”, como afirmou o advogado Magalhães e Silva. Claro que um regime justicialista não é um regime saudável e a nosso sector da justiça tem aproximadamente o mesmo grau de salubridade que a nossa política. Mas recuso-me a fingir que a solução para isso é fingir que está tudo bem para “não alimentar os extremos”. Antes, a solução era não ter tanto tráfico de influências e corrupção.

Portugal encontra-se hoje numa verdadeira armadilha, uma dinâmica que já foi inúmeras vezes identificada por vários académicos estudiosos de outros contextos políticos nacionais e que podemos caracterizar como uma political corruption trap. Um equilíbrio social e político profundamente negativo mas estável, pois extremamente difícil de ultrapassar. Como é possível que em democracias, onde os burocratas respondem perante os políticos e os políticos respondem perante os eleitores, seja possível que a corrupção não seja punida pelos eleitores? Em teoria, numa democracia, os eleitores podem sempre escolher outros actores políticos e punir aqueles que se revelam malfeitores. Se a corrupção beneficia poucos à custa de muitos, como é possível que os muitos não se revoltem? Na verdade, inúmeros trabalhos mostram que é perfeitamente possível democracias ficarem presas numa dinâmica em que os eleitores toleram níveis elevados de corrupção e comportamentos transgressores por parte dos políticos. Primeiro, porque num contexto onde as práticas de corrupção são generalizadas a muitos actores políticos, ou pelo menos há a percepção de que estas práticas são generalizadas, os eleitores frequentemente estão dispostos a aceitar o carácter corrupto de alguns políticos, se consideram que estes estão, por exemplo, mais próximos do seu posicionamento ideológico. Se todos são corruptos, os eleitores preferem os corruptos da sua cor política ou aqueles que propõem políticas públicas de que gostam mais. Segundo, porque quando a proporção de actores políticos corruptos é elevada, tal altera os cálculos de potenciais novos políticos, daqueles com ambições para entrar no meio político. A política torna-se mais atractiva para pessoas que não têm problemas em utilizar tráfico de influências e práticas de corrupção para obterem o que desejam, e menos atractiva para aqueles que até gostariam de entrar na política mas que não estão dispostos nem interessados a utilizar práticas menos éticas. Sair deste equilíbrio é extremamente difícil. Sendo certo que Portugal não tem os níveis de corrupção de países como a Rússia ou o Brasil, também é certo que Portugal está numa dinâmica que me parece bem descrita por esta lógica viciosa da armadilha. Sair deste péssimo equilíbrio social requer não só mudar os comportamentos e práticas habituais de uma proporção elevada de actores políticos, mas também alterar as expectativas que os eleitores, os burocratas, a maioria dos políticos e os futuros candidatos a políticos têm sobre esses comportamentos. Alterar estas duas faces da mesma moeda, de forma simultânea, é dificílimo. Infelizmente, não vejo que Portugal esteja no bom caminho para o fazer nos próximos tempos.

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