Tomo para epígrafe destas breves linhas uma frase tragicamente irónica, retirada do Cartoon de António, no Expresso de 17 de Março de 2023, que leva por título “Perdão – Lava mais branco”, contendo também a figura de um clérigo que segura na mão um pacote de um eficaz produto branqueador com a seguinte inscrição: “Perdão – detergente espiritual”. Esta frase dá que pensar. É uma frase irónica e arrasadora, que manifesta também, segundo creio, a razoável repugnância por um certo conceito de perdão, ultimamente em voga na cabeça de muitas pessoas, dentro e fora da Igreja. Tal conceito, erróneo, de perdão supõe que o perdão divino seja uma espécie de lixívia que branqueia eficazmente toda a espécie de pecados e actos imorais, sem a necessidade e a exigência de acções ulteriores por parte do pecador ou, quando muito, apenas com a simples exigência da recitação de umas poucas ave-marias ou pai-nossos. Numa tal visão, compreendo que alguém que merece todo o meu respeito, tal como Bárbara Reis, no seu artigo de opinião, no Público de 18 de Março último, possa contundentemente afirmar: “nunca compreendi (já adivinha) a leveza com que os católicos se confessam, sabendo que o padre vai perdoar e que tudo se resolverá com uns pai-nossos e umas ave-marias”. Se, de facto, algum católico se confessa com esta “leveza”, devo dizer que também eu, sendo padre católico, afirmo, com a mesma contundência, que não compreendo de todo tal confissão, sintonizando, assim, inteiramente, neste ponto, com Bárbara Reis.
Ora, tal conceito de perdão não é o da Igreja Católica, ainda que algum dos seus membros assim o possa julgar. É certo que o perdão divino, sendo inteiramente gratuito, apaga completamente os pecados dos pecadores, que manifestem sinceramente arrependimento. Mas isso não se deve a uma espécie de um acto de subtil magia, operado por Deus. Com efeito, o perdão é uma acção do próprio Cristo, filho de Deus, que para tal assumiu, voluntariamente, os pecados, passados, presentes e futuros, de todos os humanos pecadores (onde naturalmente me incluo), verdadeiramente arrependidos, resgatando-os pelo seu sangue. E até à última gota.
Quer dizer, Cristo pagou, justamente, pelos nossos pecados. E assim não saltou por cima das exigências da justiça e da verdade. É que o verdadeiro perdão, ou misericórdia, exige uns mínimos (embora os exceda largamente): a justiça e a verdade. Sucede que estas mesmas exigências, que o próprio Cristo cumpriu, também são exigidas a cada um dos seus seguidores quando pecam. Por isso, ao pecador a doutrina católica exige, não só um verdadeiro arrependimento, como também um acto de reparação (ou de satisfação) da injustiça cometida pelos seus pecados.
Compreende-se, assim, que sendo o perdão de Deus inteiramente gratuito, não se segue que o ser humano pecador o queira honestamente receber, por mais que se abeire do confessionário. Na verdade, uma coisa é o perdão de Deus, universalmente oferecido, outra coisa, e bem diferente, é que esse perdão seja sinceramente acolhido pelo pecador, com arrependimento e com todas as suas inevitáveis consequências. Ora, o acolhimento sincero do perdão de Deus por parte do pecador fica dependente de este último o manifestar, realmente e em actos concretos – e não apenas virtualmente, apenas na sua cabeça ou por um acto de magia –, com toda a sinceridade do seu coração, aceitando, consequentemente, satisfazer a sua penitência, através um acto de reparação real e concreto, para repor, de alguma maneira proporcionada e adequada, a justiça e a verdade roubadas pelas suas ofensas cometidas. Digo de alguma maneira, pois, na verdade, uma vez roubadas a justiça e a verdade, mediante uma ofensa, estas já não poderão vir a ser total e integralmente repostas por uma justiça apenas humana, mas requer também uma acção de Deus, sumamente justo e verdadeiro.
Destas considerações segue-se, então, que os abusos sexuais cometidos por padres e outros membros da Igreja Católica contra crianças inocentes, exigem, não só o pedido de perdão às vítimas por parte dos abusadores, como também a satisfação de uma pena adequada e proporcionada aos danos causados. Assim, a Igreja, ao ter encoberto os abusos sexuais tem a obrigação moral, e também legal, de recompensar as vítimas inocentemente abusadas. A doutrina da Igreja da satisfação da pena não só não é obsoleta, mas, ao invés, revela-se agora, infelizmente, nas atrocidades dos abusos sexuais, mais actual e vigente do que nunca. O próprio Catecismo da Igreja Católica o afirma em vários dos seus pontos. Citamos apenas três para não maçar o leitor:
Os actos do penitente são: o arrependimento, a confissão ou manifestação dos pecados ao sacerdote e o propósito de cumprir a reparação e as obras de reparação. (CIC, 1491)
O confessor propõe ao penitente o cumprimento de certos actos de “satisfação” ou “penitência”, com o fim de reparar o mal causado pelo pecado e restabelecer os hábitos próprios dum discípulo de Cristo. (CIC, 1494)
O pecado é um acto pessoal. Mas, além disso, nós temos responsabilidade nos pecados cometidos por outros, quando neles cooperamos:
- (…) não os denunciando ou não os impedindo, quando a isso obrigados;
- protegendo os que praticam o mal. (CIC, 1868)
Em conclusão, cometem um erro inaceitável para razão humana e para a doutrina da Igreja, aqueles seus membros, por mais destacados que sejam, que negam a necessidade de a Igreja Católica indemnizar as vítimas. Acertam com a doutrina da Igreja aqueles membros que, pelo contrário, defendem publicamente a necessidade de ressarcimento das mesmas, como são os casos de D. Francisco José Senra Coelho, arcebispo de Évora, D. Nuno Almeida, bispo auxiliar de Braga, D. Armando Esteves Domingues, bispo de Angra do Heroísmo e D. Américo Aguiar, bispo auxiliar de Lisboa, entre outros.