No início do último dia do ano de 2022 fomos confrontados com a triste notícia do falecimento do Papa emérito Bento XVI, cujas cerimónias fúnebres terão lugar a 5 de Janeiro de 2023. A notícia era esperada, depois do Papa Francisco, poucos dias antes, ter anunciado o agravar do seu estado de saúde e de ter pedido orações aos fiéis católicos por Bento XVI.

Bento XVI é indubitavelmente uma das figuras maiores da história do cristianismo e da história do pensamento ocidental. A sua inteligência luminosa e penetrante coloca-o entre os maiores teólogos-filósofos, que julgamos comparável a Agostinho de Hipona ou a Tomás de Aquino, entre outros. Académico e intelectual eminente, Ratzinger ousou dialogar com os grandes autores da história da filosofia, especialmente com os da Modernidade e da filosofia contemporânea, com particular ênfase para os chamados “mestres da suspeita”, explicando as deficiências das suas respectivas antropologias e consequentes derivas ideológicas, nocivas para o ser humano e para a convivência justa e pacífica entre os povos, sobretudo numa sociedade de globalização. Entre elas, destacou o materialismo marxista, o nazismo, a ditadura do relativismo, a ilusão da estreita razão técnica, os efeitos deletérios sobre a economia da especulação financeira, a busca de lucros desligada do bem-comum, a exploração desregrada dos recursos da terra, o aumento das desigualdades e das novas pobrezas, a corrupção e a ilegalidade, o desrespeito dos direitos humanos dos trabalhadores, a redução das redes de segurança social, a mobilidade social, o ecletismo e nivelamento cultural e a ausência de uma verdadeira fraternidade (Caritas in Veritate, 21-33).

Como é timbre dos grandes Mestres, Ratzinger focou a sua atenção nos núcleos teóricos fundamentais da condição histórico-existencial humana: o diálogo entre a fé e a Razão (Logos); o Amor gratuito (Ágape), como centralidade da fé cristã e da vida humana; a esperança, capaz de enfrentar as contrariedades do tempo presente; a certeza da verdade; e a caridade na verdade, a qual impele ao compromisso com a justiça e a paz, produzindo inevitáveis e benéficos influxos nos planos social e político.

Na senda de um dos axiomas mais bem conseguidos pelo pensamento cristão – expresso na fórmula cristológica “sem separação e sem confusão” ou de “separar para unir” –, Ratzinger não contrapõe a fé à Razão, mas admite uma distinção e, simultaneamente, uma unidade intrínseca entre estes dois “âmbitos cognitivos” (CV, 5), que se reclamam mutuamente, superando, assim, as deficiências do fideísmo e do racionalismo positivista, que a história mostrou serem nefastos para a humanidade.

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Convém destacar aqui a veemência com que Bento XVI afirmou a centralidade do papel da Razão para o cristianismo, enquanto religião do Logos (Razão-criadora e Razão-Amor), bem como a sua insistente obsessão pela verdade, tão reiteradamente retomada e afirmada nos seus escritos e discursos. Assim, “defender a verdade, propô-la com humildade e convicção e testemunhá-la na vida são formas exigentes e imprescindíveis da caridade” (CV, 1) era a proposta do Papa alemão, na sua encíclica de maior conteúdo social e político.

Julgamos que Bento XVI ficará conhecido como o Papa da fé na Razão e do serviço da verdade. Não de uma verdade que ele julgasse já possuir totalmente, mas daquela que ele afirmava ser necessário buscar continuamente e que o levou a reconhecer, no seu discurso em La Sapienza (apesar de impedido de o proferir), que a Universidade e as suas Faculdades têm também o dever de custodiar, isto é, de “ser guardiãs da sensibilidade pela verdade, [e] não permitir que o homem seja desvinculado da busca da verdade”. Aí, o Papa relembra que faz parte da natureza da Universidade “estar ligada exclusivamente à autoridade da verdade” (sublinhado meu) e, por isso, na liberdade de quaisquer autoridades políticas, eclesiásticas ou ideológicas. Com efeito, o Papa alertava para o perigo, ainda hoje não completamente ultrapassado, das próprias universidades haverem cedido às modas da “pós-verdade”.

Num tempo marcado por um pensamento que vacila ante a possibilidade de alcançar “a certeza da verdade” e pela afirmação do relativismo sobre os factos e sobre os valores, nascido com o historicismo e sociologismos contemporâneos, Bento XVI ousava afirmar, contra a corrente dominante, que a verdade é “luz da razão e da fé” e pode ser procurada para bem da humanidade. No relativismo via o Papa o perigo, ainda hoje actual, de que o homem “se renda diante da questão da verdade. E isso significa ao mesmo tempo que a razão, no final, sucumbe ante as pressões dos interesses e do atractivo da utilidade, obrigada a reconhecê-la como critério último”. É que, segundo o Papa-filósofo, quando a razão “perde a coragem para a verdade”, não se torna maior, mas sim mais pequena. E nessa altura a Razão cede perante “a razão do mais forte”, os caprichos das ideologias, as lógicas do poder e dos interesses privados. Não configura a actual guerra da Ucrânia mais um exemplo disso mesmo?

Acrescentava ainda Bento XVI que:

Com efeito, a verdade é «logos» que cria «diá-logos» e, consequentemente, a comunicação e comunhão. A verdade, fazendo sair os homens das opiniões e sensações subjectivas, permite-lhes ultrapassar determinações culturais e históricas para se encontrarem na avaliação do valor e substância das coisas. A verdade abre e une as inteligências no logos do amor: tal é o anúncio e o testemunho cristão da caridade”. (…) viver a caridade na verdade … é um elemento útil e indispensável para a construção duma boa sociedade e dum verdadeiro desenvolvimento humano integral (CV, 4).

“Caridade na verdade”, para completar o que Paulo de Tarso já havia proposto nos alvores do cristianismo: “a verdade na caridade”.

Não nos parece exagerado afirmar que Bento XVI tenha feito da sua vida uma busca humilde e incessante da verdade e exercido um verdadeiro ministério de “serviço da verdade”, como “humilde trabalhador da vinha do Senhor”. E fê-lo, não sem os defeitos próprios dos apaixonados pela sua busca. Para Bento XVI “a verdade torna-nos bons, e a bondade é verdadeira: [sendo] este o optimismo que vive na fé cristã, dado que a ela foi concedida a visão do Logos, da Razão criadora, que, na encarnação de Deus, se revelou ao mesmo tempo como o Bem e como a própria Bondade”.

O percurso teórico proposto pelo Papa alemão – do logos, para o diá-logos, e deste para a certeza da verdade – foi também o seu percurso existencial em que a teoria se uniu indissociavelmente à praxis da acção ética, culminando na renúncia ao ministério petrino. Com este gesto, simultaneamente humilde e eloquente, assinava com o selo da sua própria vida que a verdade não é uma simples ideia, mas uma força vital que devolve ao ser humano crente, na razão e na fé, a sua liberdade e bondade.

A renúncia de Bento XVI ao ministério petrino agitou os meios de comunicação social, procurando alguns deles adivinhar as recônditas intenções que teriam levado o Papa, segundo eles “conservador”, a tão inédita decisão. Por contraste, o Papa alemão aduzia uma razão muito simples, mas de meridiana e poderosa claridade: “Depois de ter examinado repetidamente a minha consciência diante de Deus, cheguei à certeza de que as minhas forças, devido à idade avançada, já não são idóneas para exercer adequadamente o ministério petrino. (…) Por isso, bem consciente da gravidade deste acto, com plena liberdade, declaro que renuncio ao ministério de Bispo de Roma”. Na verdade, é necessária muita coragem e liberdade para “prescindir do cargo” quando já não se tem forças. Não é este um exemplo claro de humilde discernimento e de elevação ética na vida política?

Bento XVI, que havia sido um dos mais ilustres teólogos peritos do Concílio Vaticano II, assumia, agora, neste gesto de renúncia, um papel relevante e indelével na passagem ao Papa Francisco do testemunho petrino de guardar o tesouro da fé. Francisco, consciente da transcendência do gesto de Bento, declarava abertamente a sua sentida gratidão ao seu predecessor, aquando da publicação da sua primeira encíclica Luz da Fé, afirmando sem ambiguidades:

Ele [Bento XVI] já tinha quase concluído um primeiro esboço desta carta encíclica sobre a fé. Estou-lhe profundamente agradecido e, na fraternidade de Cristo, assumo o seu precioso trabalho, limitando-me a acrescentar ao texto qualquer nova contribuição. De facto, o Sucessor de Pedro, ontem, hoje e amanhã, sempre está chamado a «confirmar os irmãos» no tesouro incomensurável da fé que Deus dá a cada homem com luz para o seu caminho (LF, 7).

Creio que estas mesmas palavras respondem às difundidas teses, também evidenciadas pela cinematografia recente, da pretensa oposição entre Bento XVI e Francisco. E disso são também demonstrativos os múltiplos e continuados gestos de carinho do Papa Francisco pelo Papa emérito.

A renúncia de Bento XVI não foi um gesto desligado do conjunto da sua vida; foi tão-somente mais um elo que encerrava, numa consistência crescente, a férrea cadeia da sua paixão vital pela Verdade. Paixão essa que ecoa ainda no acorde final do seu derradeiro e lúcido acto de fé no Logos-Amor, pronunciado no leito da morte: “Senhor, amo-Te”.

Não nos parece temerário antever que Bento XVI virá a ser declarado santo e doutor da Igreja.

Como testamento espiritual o Papa emérito pede que também nós guardemos, como ele, o tesouro da fé: “Permanecei firmes na fé! Não vos deixeis confundir!”

Antes, Bento XVI havia proposto que fizéssemos da nossa vida “um lugar de beleza”. Ele já fez a sua parte!