Paolo di Dono, mais conhecido como Paolo Uccello, nasceu em junho de 1397 perto de Florença. O seu pai era barbeiro e cirurgião e a sua mãe uma mulher simples e terna que o ensinou a amar os animais. Giorgio Vasari diz dele que era um mestre da perspectiva e dos volumes e que usava as terras da Toscânia para fazer as suas próprias pinturas, referindo apenas de passagem que o nome Uccello lhe viera da colecção de esboços de aves que possuía em casa. À semelhança do seu amigo Donatello, era um leitor esporádico que visitava os claustros do seu tempo em busca de manuscritos antigos nos quais se pudesse inspirar. Passou toda a sua vida obcecado com a história da Arca de Noé. Era uma maravilha, pensava ele, perceber que os animais se tinham querido salvar da iminência do dilúvio, o que coincidia com o que a sua mãe lhe ensinara – que também os animais tinham alma.

Uccello lia, movendo os lábios, cofiando a barba branca e soltando grandes suspiros. Vestia-se quase sempre de veludo vermelho e usava um pesado avental de couro enquanto trabalhava. Quando lhe ocorreu pintar os seus amigos pássaros com as respectivas penas de cada um deles, já há muito vivia uma história de amor com as capitulares dos saltérios e das crónicas, das gestas e dos tratados matemáticos. Todo o bom começo augura um bom final, todo o começo é genesíaco, pensava Uccello. Acreditava profundamente que a beleza do mundo era o sorriso do Criador, Ele que, pelas tardes de certos verões florentinos, caminhava ainda entre os seres da sua Criação. Não apenas pintou a garça com uma pena da sua cauda, ​​mas também o humilde pardal com uma retirada das suas asas, o pintassilgo com algumas penas da coroa e a gaivota com algumas recolhidas do seu peito. Quem melhor do que os pássaros para saber de que são feitos? Não vendeu nunca aqueles desenhos e têmperas que guardava em casa. Dizia que os pássaros eram criaturas em processo de se tornarem anjos e que os anjos tinham outrora sido pássaros. Não faltavam muitos anos para que Leonardo da Vinci lhes pintasse asas de arco-íris.

Uccello acreditava que era melhor ler a mesma página ou o mesmo capítulo cem vezes do que ler cem livros diferentes, e não era o único naqueles dias a pensar dessa forma. O uso frequente da chamada terra verde nas suas obras teve origem nos anos passados na oficina de Ghiberti e na sua admiração pelo bronze esculpido, os seus sais e relevos. Mais do que pintar quadros ou frescos, o que realmente o deixava feliz era imaginar as suas obras ao mais ínfimo pormenor antes de as plasmar em telas, madeira ou paredes. Gostava de música coral e odiava queijo. Acreditava firmemente que os figos melhoravam com o passar dos meses e adorava comê-los secos e polvilhados com grãos de funcho. Ainda segundo Vasari, quando pintava leões, o observador ouvia-os rugir; se pintasse corças ou lebres, quase podia aperceber-se da tensão muscular no momento que antecede o salto. Vasari relata que, já velho, Uccello afirmava: «Oh, que tão doce questão, a perspectiva!» A sua maior conquista como pintor e ao mesmo tempo o seu limite expressivo.

Quando estudava geometria com Manetti, costumavam reunir-se numa pequena sala da biblioteca do palácio de Paolo Camesecchi, sob a fraca luz de inverno que entrava por uma janela polícroma. Citavam Platão, que disse que Deus ou o Criador «geometriza» e podiam passar horas e horas a falar sobre o carácter do triângulo e o estável orgulho do cubo. Quanto mais Manetti e Uccello aprendiam, mais misterioso lhes parecia o mundo, mais bela e surpreendente a natureza. Tanto ficavam maravilhados com as sementes das maçãs e com o número cinco, como com as formas dos caracóis marinhos por comparação com as dos caracóis terrestres – que, segundo eles, eram mais pequenos por serem mais humildes.

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Em agosto de 1469, Uccello escreveu: «Sinto-me velho e achacado, a minha mulher está doente e já não consigo trabalhar mais». Passava as manhãs a observar as diferentes penas que lhe tinham servido de pincéis e as suas próprias pinturas de pombas e faisões. Na sua Adoração (Staatliche Kunsthalle Karlsruhe), retirou à iconografia os Magos; suspendeu, contra uma noite de cobalto, seis anjos que, nas suas vestes luminosas, coleantes e drapeadas, velam um menino de dedo na boca – o indicador – e acrescentou à narrativa um arroio entalhado na terra, um cervo, um galgo e um leão – embora já naquela altura não houvesse leões na Judeia, ou pelo menos andariam longe de Belém, cidade de prodigiosos azeites e melhores carpinteiros.

E naquilo que até então tinha sido uma representação sonolenta de um quadro costumeiro, Uccello revelou afinal uma meditação sobre corpos feridos, sobre as feridas que infligimos – ou que nos são infligidas – tantas vezes sem querer. Demonstrou como a Adoração fala afinal sobre cicatrizes e alguns dos modos que inventámos para nos protegermos da dor, mas também sobre a necessidade de sermos acolhidos e acariciados. A fragilidade exposta ao cuidado de um boi, de um burro e de uns pais confusos e aflitos: eis a condição vulnerável, uma estrutura trágica, uma forma à qual qualquer vida definível como humana não pode escapar, porque as feridas tanto supuram noites de insónia, como dias ensolarados por raios de azul; são omnipresentes e, embora por vezes pareçam ter desaparecido, permanecem para sempre gravadas num corpo que Deus quis assumir.

A vulnerabilidade, como qualquer outra estrutura, é uma estrutura impura da condição humana. A sua impureza, contudo, não é expressão de um qualquer mal ou de algo diabólico – uma espécie de pecado original – mas sim da ambiguidade e do jogo das situações e das relações, do conflito inerente a cada decisão e dos traumas de qualquer história. Somos sombras a caminhar sobre um palco onde a encenação se esfarelou. Somos sombras marcadas por ausências, por arrependimentos, por saudades infinitas, por feridas que reabrem subitamente e que talvez nada nem ninguém poderá curar completamente. Somos sombras assediadas por fantasmas que, provavelmente apesar de nós, regressam com a naturalidade das marés.

A vulnerabilidade está ligada a uma identidade que nunca está definitivamente fixada, porque permanentemente exposta aos outros, ao tempo e à precariedade, ao improviso do momento e à singularidade dos nomes próprios; uma identidade que se constrói num universo que é, em última análise, a estranha e improvável dança da existência, na qual, estivéssemos nós atentos, e muito mais vezes nos surpreenderiam saltos dos pardais e o canto com que seis anjos com asas de avestruz embalam, contra um céu nocturno, um Deus que escolhe o indicador, e não o polegar, para levar à boca.

Tal como Noé fizera com as criaturas da sua arca, Uccello acreditava que a arte salvava alguma coisa, embora não soubesse exatamente o quê. A luz abandonou-lhe os olhos quando, aos setenta e oito anos, a morte o abraçou com o carinho que merecia. Dizem que poucas horas antes de morrer citou o seguinte salmo: omne quod spirat, laudet Dominum – o último versículo do último salmo do Saltério.

Feliz Natal.