Em Portugal, a vacinação contra a COVID-19 teve início em dezembro de 2020. A fileira incluiu à proa os mais idosos e a idade foi baixando disciplinadamente, até chegar às crianças, em agosto de 2021. Nesse ínterim, enquanto o legítimo questionamento sobre a eficácia e segurança das vacinas era silenciado e/ou classificado de desinformação, relativamente à vacinação das crianças, algum debate conseguiu abicar a mistificação sanitária e desembarcar na margem da comunicação social. Algumas organizações de saúde e grupos de profissionais emitiram pareceres sobre o tema e vários médicos vieram defender em público a não vacinação de crianças. Os argumentos, que o tempo veio a comprovar, contrapunham a falta de benefícios perante uma doença que pouco afligia as crianças, a impossibilidade ética de exigir o seu sacrifício para a defesa dos mais velhos, a inutilidade pelos fracos resultados na prevenção da transmissão, e o carácter quimérico da operação de perseguição de uma imunidade de grupo vislumbrada ao periscópio, obviamente inatingível perante um vírus mutante.

Mas a discussão foi, a dado momento, fortemente condicionada, pelo primeiro-ministro António Costa que anunciou, em debate no parlamento sobre o estado da Nação, ser a vacinação das crianças a prioridade do seu governo, ainda antes de ser concluído o parecer da Comissão Técnica de Vacinação, e pelo presidente da república Marcelo Rebelo de Sousa, que tomou posições públicas na mesma direção e contrárias aos pareceres técnicos. Mudaram-se estrategicamente alguns membros e conselheiros  de comissões de vacinação, e a Direção-Geral da Saúde (DGS) reformulou a Norma que passou a recomendar a vacinação universal contra a COVID-19 a partir dos 12 anos de idade, alargando, poucos meses mais tarde, para os portugueses a partir dos 5 anos. E também as crianças navegaram na esteira da vacinação.

Mas eis que, dois anos depois, na profundidade das vagas mediáticas – alguém reparou mesmo quando aconteceu? –, a vacinação de crianças saudáveis contra a COVID-19 em Portugal foi “interdita”, não sendo esta a regra nos países europeus.

Note-se que até outubro de 2023, segundo o Centro Europeu de Controlo e Prevenção das Doenças – ECDC, em proporção, Portugal foi o segundo país europeu que mais vacinou crianças, logo atrás da Itália. Enquanto a média de vacinação de menores, na Europa (EU/EEA), foi de 27% (com variação entre 2% e 51%), em Portugal foi de 49%. No grupo etário dos 5 aos 9 anos foi mesmo o navio-almirante da Europa, ninguém ultrapassou a fasquia dos 34% destes pequeninos portugueses vacinados.

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E, contudo, nas crianças por vacinar não se conhece pior desempenho de saúde. Até à data, não se publicou em Portugal nenhum estudo comparando indicadores de saúde física e mental das crianças vacinadas com as não vacinadas, que possa esclarecer essa questão, no segundo país da Europa que mais se aventurou na vacinação dos seus menores de idade.

Por outro lado, relativamente aos efeitos adversos atribuídos às vacinas, dados preocupantes vieram a público. Apesar de o INFARMED nos seus Relatórios de Farmacovigilância parecer tudo fazer para ocultar e minimizar a gravidade das reações adversas às vacinas COVID-19 em crianças, e da base de dados de farmacovigilância da Agência Europeia do Medicamento (EMA) – a Eudravigilance, esconder a nacionalidade dos queixosos de reações adversas inviabilizando uma análise por país, já o sistema de farmacovigilância americano – VAERS, expôs até 2022, anonimizado, o detalhe de muitas das reações adversas notificadas em crianças portuguesas. Pela extrema gravidade das mesmas, foi essa listagem entregue à Procuradoria-Geral da República, no âmbito de uma queixa-crime que deu origem à abertura de um processo (NUIPC 5752/22.4T9LSB), ainda em investigação.

Mais recentemente, o INFARMED, depois de conseguir protelar durante quase três anos, foi obrigado pelo Tribunal Central Administrativo do Sul, a disponibilizar o acesso à sua base de dados de reações adversas a medicamentos (Portal RAM), em nome do direito à informação administrativa. O jornalista Pedro Almeida Vieira confrontou assim as características de reações adversas graves a vacinas COVID-19 notificadas em crianças e jovens, bem como de indícios de más práticas de farmacovigilância. Aparentemente, a Agência Portuguesa do Medicamento não só procurou ocultar reações adversas, como se demitiu de fazer a monitorização dessas mesmas situações. Além do mais, como foi confessado pela própria agência no Relatório de Farmacovigilância apenas publicado em 30 setembro de 2022, acumulou grandes atrasos de processamento de notificações (backlog de mais de 10000 casos e de 43000 reações adversas em atraso).

Voltando às estratégias de vacinação contra a COVID-19 em crianças, nos diferentes países encontramos grandes disparidades, o que pode ser explicado pelas diversas lacunas existentes na insuficiente produção científica sobre a eficácia das vacinas, baseada sobretudo em estudos observacionais.  Neste contexto, abrem-se brechas para a infiltração de interesses do foro económico ou comercial. Em alguns países é ainda aparente uma influência política, como nos EUA ou no Brasil em que se recomenda a vacinação para todos os bebés e crianças a partir dos 6 meses de idade (no Brasil a vacinação Covid-19 é mesmo obrigatória!), estratégias associadas a uma cor partidária e contestadas pelas oposições. No Canadá, está disponível a vacinação para todos, também a partir dessa tenra idade, ainda que mais reforçada em crianças com patologias de risco, e na Europa é também o modelo da vacinação de crianças de risco que predomina.

Mas poucos são os países europeus que atualmente não permitem a vacinação contra a COVID-19 de crianças saudáveis, Portugal é um deles. E ainda bem. Talvez porque se tenha pisado a distância de segurança da quilha do navio ao fundo, o pé de piloto em linguagem naval.

A mudança operada em Portugal foi mais longe. Até 2022 qualquer criança era vacinada sem prescrição médica e sem assinatura de um consentimento informado (medida objetada por a vacina contra a COVID-19 ser um medicamento biológico, geneticamente modificado e, na época, com autorização condicional de introdução no mercado, e, como a EMA classifica agora, sujeito a Monitorização Adicional). Mas atualmente, só crianças com patologia de risco podem ser vacinadas e passou a ser exigida uma prescrição do médico assistente (no sistema PEM) atestando a patologia subjacente.

Sob uma nova direção, a DGS não esclarece na sua mais recente Norma 08/2024 de 05/09/2024, que regula a Estratégia de vacinação contra a COVID-19 em Portugal, quais os critérios para as suas decisões, nomeadamente as bases científicas para a seleção dos grupos de risco, e as vantagens que a vacinação acrescenta a estas crianças, nem disponibiliza proativamente os pareceres das suas comissões técnicas, ou das entidades que refere ter auscultado.

No entanto, como só aos médicos é agora concedida a possibilidade de prescrever as vacinas contra a COVID-19 a crianças, e exclusivamente às frágeis e doentes, para assumir essa espinhosa responsabilidade, seria importante que a DGS prestasse esclarecimento relativamente às bases científicas, dados epidemiológicos e reações adversas em Portugal e na Europa, que sustentam as suas recomendações. E é caso para perguntar: terá o INFARMED comunicado à DGS e aos seus consultores de vacinação as especificidades e a gravidade das reações adversas em crianças em Portugal?

Em contrapartida, a ministra da saúde atualmente em funções conhece bem o sistema nacional de farmacovigilância. A doutora Ana Paula Martins foi professora da Faculdade de Farmácia da Universidade de Lisboa e colaborava na Unidade de Farmacovigilância de Setúbal e Santarém, quando teve início a vacinação contra a COVID-19 em Portugal. Dificilmente não se terá apercebido do tsunami de notificações de reações adversas às vacinas contra a COVID-19, dos atrasos no seu processamento, da gravidade de algumas das reações adversas, que levaram inclusivamente à morte; é possível que se tenha perguntado se semelhante número e gravidade de reações adversas, não deveria ter originado um sinal de segurança (alerta) no sistema português de farmacovigilância.

Não terá sido irrefletidamente que, na qualidade de Bastonária da Ordem dos Farmacêuticos, assumiu a posição institucional de não recomendar a vacinação de crianças saudáveis.

No meio desta louvável mudança de paradigma na vacinação infantil contra a COVID-19 em Portugal, através de uma operação discreta de que ninguém se vangloriou, estão ainda muito vivas as marcas da tempestade que embateu em metade das nossas crianças e jovens.

Face ao exposto, neste período de paz dos bravos, torna-se premente uma auditoria célere e independente à atuação do INFARMED, uma comunicação transparente com os profissionais de saúde e cidadãos sobre a real dimensão das reações adversas das vacinas contra a COVID-19 e suas sequelas, a criação no sistema público português de canais próprios de assistência e a indemnização das vítimas.

Errar é humano, não aprender com os erros é incompetência, esconder e abandonar vítimas, é crime.

Nota: este texto está redigido segundo o novo acordo ortográfico. A linguagem naval, familiar à autora, é utilizada como figura de estilo; os termos da marinha estão em itálico e podem ser consultados no Glossário de Termos Militares.