Foi Manuela Ferreira Leite que, um dia em 2008, afirmou que certas reformas não se podem fazer em democracia. “Não é possível fazer uma reforma da justiça sem os juízes, fazer uma reforma da saúde sem os médicos”. E proferiu uma frase que foi repetida vezes sem conta, quase sempre decontextualizada: “E até não sei se a certa altura não seria bom haver seis meses sem democracia, mete-se tudo na ordem e depois então venha a democracia”. Também Friedrich Hayek terá escrito que “houve muitos casos em que sob governo autoritário as liberdades individuais estavam mais seguras que em algumas democracias”. Na cabeça de Hayek estariam outros ditadores, mas poucos podem exemplificar melhor a afirmação do filósofo do que Mustafa Kemal Atatürk.
Não há muitas personalidades políticas no mundo que acolham um culto de personalidade tão visível como Atatürk, na Turquia. Atatürk é, ainda hoje, idolatrado por grande parte da população e respeitado mesmo por aqueles que recentemente reverteram alguns princípios básicos de kemalismo.
Herói da Batalha de Gallipoli, Atatürk adquiriu uma aura de vencedor pouco comum num Império Otomano envergonhado por sucessivas derrotas militares e por contínuas perdas territoriais, e humilhado pelos aliados que ocuparam a capital e pretendiam esquartejar o que sobrava do velho Império. O Tratado de Sèvres foi a gota de água que transbordou os limites da desonra otomana. Atatürk, desobedecendo às ordens do então Sultão Mehmed VI, instalou-se em Ancara com um grupo de seguidores fiéis. Restabeleceu um parlamento à revelia do poder de Istambul, e conseguiu unir o exército na Guerra da Independência motivando-o com um discurso de forte pendor nacionalista. As forças turcas conseguiram vitórias militares importantes, nomeadamente contra a Grécia, que tinha invadido parte da Anatólia e ambicionava apoderar-se dos territórios da Trácia e da costa do Mar Egeu.
A vitória militar dos exércitos liderados por Atatürk tornou o Tratado de Sèvres inaplicável e os aliados acabaram por conformar-se com a nova realidade. As fronteiras da Turquia Moderna foram redefinidas num novo acordo, o Tratado de Lausanne e mantém-se estáveis até aos dias de hoje. Atatürk tornou-se no 1º presidente da Turquia e liderou o país até à morte, em 1938.
Depois de terminar com o sultanato e com o califado, os religiosos foram afastados do poder, tanto a nível nacional como a nível local onde detinham a gestão das cidades e das aldeias. O uso de símbolos religiosos em atos administrativos foi proibido, as ordens religiosas foram fechadas bem como as madraças, onde os estudantes apenas se dedicavam ao estudo do árabe e do Corão. Atatürk considerava este ensino nefasto, anti-científico, um desperdício de recursos humanos e contrário aos interesses do país moderno a que aspirava.
Por imposição do presidente, a Turquia abandonou o alfabeto árabe e adotou o latino, com o argumento de que tudo o que era importante no mundo era publicado em línguas que usavam este alfabeto e os turcos tinham de estar capacitados para acompanhar a evolução das ideias e da ciência. O alfabeto árabe foi proibido em todas as comunicações oficiais e deixou de ser ensinado aos jovens.
A Turquia investiu fortemente no sistema educativo e a taxa de alfabetização cresceu fortemente. As mulheres foram incluídas no ensino obrigatório e passaram a poder dispensar o véu, sendo que em cerimónias oficiais o véu foi formalmente afastado. Ganharam direito de voto e o divórcio deixou de ser uma prerrogativa do homem. Atatürk aproveitou-se da lei antiga para divorciar-se por sua livre vontade e uns dias depois, alterou a lei para atribuir direitos equivalentes a homens e mulheres.
Outras transformações foram mais curiosas. Por exemplo, todos os turcos foram obrigados a escolher um apelido que deveria ser transmitido aos seus descendentes, como acontecia na Europa que o presidente admirava. Na Turquia otomana era comum dar apenas um nome aos recém-nascidos. Ao próprio Atatürk tinha sido dado apenas o nome de Mustafa. Na escola militar, um professor, para o distinguir de outros Mustafas, adicionou-lhe o sobrenome Kemal. Mas a confusão administrativa na Turquia era tremenda, com a multiplicação de nomes iguais e as dificuldades de identificação que por vezes surgiam. Todos os turcos puderam – foram obrigados – a escolher um sobrenome e Mustafa Kemal escolheu para ele próprio, Atatürk, literalmente o Pai dos Turcos. Por lei, mais ninguém poderá usar o mesmo sobrenome.
As mudanças produzidas na Turquia com Atatürk foram a todos os níveis, impressionantes. Mas há uma verdade que não pode ser escamoteada: muitas alterações só puderam avançar porque o idolatrado Atatürk era, de facto, um ditador. Um ditador que cometeu muitos dos mesmos pecados de todos os outros ditadores da história. Atatürk nunca hesitou em livrar-se dos adversários, com condenações à morte por tribunais especiais e prendendo e exilando oposicionistas. Excetuando um pequeno interregno, a Turquia de Atatürk foi um país de partido único.
Apesar de ninguém na própria Turquia ter dúvidas que Atatürk foi um ditador, a grande maioria dos turcos aplaude sem reservas a sua liderança. Sem ser pela força, a Turquia nunca poderia ter sido modernizada, porque o clero não o permitiria e a grande maioria da população não concebia o poder separando o estado da igreja. Atatürk é o protótipo do ditador esclarecido. O ditador que foi sempre bom para o povo. O ditador que lutava pelos turcos contra as forças que condenavam a Turquia ao atraso e à pobreza. O homem que tornou a Turquia num país moderno. O pai dos turcos.
O culto ao ditador é omnipresente na Turquia, onde a sua imagem está em todo o lado. Foi-lhe construído um grandioso mausoléu em Ancara, há milhares de estátuas de Atatürk espalhadas por toda a Turquia e até há uma lei que proíbe ofensas à memória do ex-ditador. Nos últimos anos, a imagem de Atatürk transformou-se também num símbolo de resistência à re-islamização do país que o partido conservador de Erdoğan tem realizado. Uma bandeira de Mustafa Kemal Atatürk numa janela é, cada vez mais, uma declaração de que quem vive naquela casa se opõe ao AKP, o Partido da Justiça e Desenvolvimento que governa a Turquia desde 2002.
Manuela Ferreira Leite tinha razão quando dizia que certas mudanças não podem ser feitas em democracia e algumas das transformações dos anos 20 e 30 na Turquia demonstram-no. Mas para quem nunca tinha vivido em democracia, o que estava em causa não era perder a liberdade. Era apenas experimentar outra forma de autocracia. E, para o bem do povo turco, o ditador que substitui o sultão, foi efetivamente um dos poucos casos em que sob um governo autoritário as liberdades individuais cresceram e foram mais protegidas.
Mas no mundo das democracias liberais em que vivemos, a resistência a qualquer tentativa de eliminar direitos políticos, sociais e económicos seria vigorosa e tal possibilidade afigura-se quase como inconcebível. Mesmo para aqueles que, tanto à direita como à esquerda, sonham com a vinda de líderes autoritários, recomenda-se cuidado. A história sugere-nos que a probabilidade do líder autocrático que toma o poder vir a ser um “ditador esclarecido” não é muito alta.