Da última crónica que escrevi ficou-me um incómodo de não ter sido claro num aspecto que me é especialmente caro, sendo essa a razão de aqui voltar agora.
Há uns vinte anos, passeava dois sobrinhos mínimos pela mão, no jardim Amália Rodrigues, projectado por Ribeiro Telles, quando vejo um senhor dirigir-se a mim, com um passo que me parecia familiar.
Demorei uns segundos a perceber que era Ribeiro Telles que, ainda nem bem tinha chegado, já vinha a dizer que é sempre a mesma coisa, um jardim sem manutenção adequada nunca chega a ser o que se pretende.
Conhecendo Ribeiro Telles como conhecia, percebi rapidamente o que tinha acontecido.
Uns dias antes eu tinha feito umas críticas sobre o jardim Amália Rodrigues, sobretudo a parte do jardim que fica junto à rua Marquês de Fronteira. Alguém terá mostrado os comentários a Ribeiro Telles, que teria aproveitado o fim de semana para passear com a mulher e tentar perceber se havia alguma razão nos comentários (ao contrário de muitos dos seus epígonos, Ribeiro Telles estava sempre disponível para mudar de opinião e tinha sempre curiosidade em ouvir as opiniões dos outros, por mais absurdas que lhe parecessem).
A questão da manutenção de parques e jardins como processo fundamental para os conduzir à maturidade – os jardins, ao contrário dos edifícios, não ficam concluídos quando acaba a sua construção, mas quando a sua vegetação atinge a dimensão esperada – é uma questão clássica em arquitectura paisagista.
Tão clássica e fundamental que não me lembro de nenhum dos meus professores deixar de a referir.
O problema da desvalorização económica e social do jardineiro face ao pedreiro, considerando-se este último como um artesão e um trabalhador especializado, quando o jardineiro era tratado como um dos milhões de trabalhadores rurais do país que, por acaso, cavava jardins em vez de batatas, era sistematicamente referido.
O papel do dono jardim era também considerado essencial, reconhecendo-se, no entanto, uma gradação relevante em função da dimensão e natureza do jardim.
Um pequeno páteo ou um pequeno jardim particular tinham de, em primeiro lugar, responder ao “programa” definido pelo dono da obra e desde que o dono não insistisse em plantar as árvores com a raiz para cima, se queria salsa, era salsa, se queria coentros, era coentros, cabendo ao projectista o papel de sugerir as melhores soluções com as possibilidades técnicas existentes, para além de ajudar o dono a perceber melhor o que verdadeiramente garantia a utilização do jardim que o dono pretendia fazer.
À medida que a dimensão do jardim aumenta, aumenta a complexidade do “programa” e a interferência directa do dono da obra tende a diminuir, até porque frequentemente deixa de ser um indivíduo, com as suas idiossincrasias, para ser uma entidade, com as suas regras.
O que não invalida interferências que possam ser consideradas abusivas pelo projectista, como quando a Câmara de Lisboa, no fim dos anos 50 do século passado, recuou no projecto de renovação da avenida da Liberdade, por pressão da opinião pública, projecto esse que era de Caldeira Cabral e Ribeiro Telles, o que levou Ribeiro Telles a bater com a porta e sair da Câmara de Lisboa.
Esta circunstância resultou na consequência feliz de abrir a possibilidade de Viana Barreto o chamar para trabalhar no desenvolvimento do projecto do jardim da Gulbenkian, cujo concurso Viana Barreto tinha acabado de ganhar com a sua proposta de Plano Geral.
Em qualquer escala de intervenção, o projectista de jardins sabe que tem de responder ao programa do dono da obra, mas que é crucial assegurar a boa manutenção do jardim, para garantir a qualidade do resultado.
O que não faltam são exemplos de projectos completamente arruinados por uma manutenção que não compreende o que se pretende ou não executados por, afinal, não corresponderem aos objectivos de quem os encomendou.
Por isso, todos os projectos feitos com cabeça incluem um plano de manutenção que é o “caderno de encargos” do jardineiro que cuida do jardim, o conduz à maturidade, e mais além.
Quando se pretende desenhar ou transformar paisagens, o problema é essencialmente o mesmo, mas pode ser menos claro quem o define os objectivos a atingir e quais são os mecanismos possíveis para assegurar que o desenho final é cumprido.
A paisagem tem uma enorme complexidade porque, para usar a definição de Teresa Andresen, a paisagem é o resultado da forma como nos relacionamos com os elementos naturais.
O dono da obra, neste caso, não é o Estado, mas a comunidade, e os jardineiros são os agricultores, os pastores, os produtores florestais e todos os agentes económicos que, na sua actividade de criar riqueza e tratar dos seus interesses (o que inclui a opção de não gestão), gerem a paisagem.
Tal como num jardim, se um jardineiro não compreende o que se pretende, arruína o projecto, na paisagem, se quem gere não compreende como os objectivos podem ser atingidos, não há maneira de conduzir a paisagem para onde se pretende.
Quem gere paisagens são pessoas comuns que todos os dias decidem se semeiam batatas ou trigo, se plantam vinhas ou amendoais, se regam ou não regam, se estrumam ou adubam, se pastoreiam ou florestam, tudo decisões quotidianas tomadas pelo “jardineiro de paisagens”, da mesma forma que num jardim é do jardineiro decisão quotidiana de podar, de regar, de limpar, de semear, de plantar, de cortar, quando e como.
Pode-se escrever o que se quiser no plano de manutenção do jardim, será sempre a interiorização, pelo jardineiro, do que se pretende, que definirá o sucesso ou o desastre.
Os planos de ordenamento deveriam ser desenhados com base no pressuposto de que não é possível determinar a existência de pastoreio onde o gestor do terreno não vê retorno no esforço que tem de fazer para ter pastoreio nessa área.
Recentemente dei por mim na apresentação de uma investigação de ordenamento do território que usava um modelo que concluía que, em algumas freguesias da área de estudo, ter-se-ia de alterar 75% do uso do território porque o modelo sugeria que em 75% da área os usos existentes eram inadequados.
Para as responsáveis do plano, isto dava ideia de como seria precisa uma grande vontade política e uma forte afectação de recursos para se atingir os objectivos a que o plano de propunha.
Para mim, que acho sempre que a probabilidade de um modelo estar errado é muito mais alta que a probabilidade da realidade estar errada, o que estes valores diziam é que seria melhor olhar outra vez para o modelo, para perceber onde estava a falhar.
Quer para uns e quer para outros, técnicos igualmente qualificados, é certo que seriam os agricultores, os produtores florestais, os pastores e outros gestores de paisagens a ter de executar o “caderno de encargos” implícito no plano de ordenamento pelo que, ou o compreendiam e tomavam todos os dias decisões no sentido pretendido, ou o plano falharia em toda a linha.
Infelizmente, estas considerações, que me parecem banalidades sobre gestão de paisagens, são tratadas pelo nosso sistema de ordenamento do território como excentricidades ou cedências aos interesses económicos.
O nosso sistema de ordenamento do território parte de pressupostos diferentes dos meus, parte do pressuposto de que cabe ao Estado, enquanto garante do bem comum, definir que paisagem queremos ter.
No essencial, o nosso sistema de ordenamento do território baseia-se na crença de que isso se consegue com base num desenho técnico associado a regulamentos administrativos, que obrigam os gestores da paisagem a cumprir normas administrativas cuja racionalidade, incluindo económica, não é reconhecida pelos que têm de cumprir essas normas.
No fundo, os responsáveis pelo nosso sistema de ordenamento do território actuam como os donos de jardins que insistem em plantar árvores com raízes para cima, por razões que, provavelmente, eles conseguirão explicar muito bem, eu é que não as consigo compreender.