Durante o Conselho Nacional do PSD de 2023, cerca de duas semanas antes da demissão de António costa, Montenegro chamou ao Orçamento de Estado de 2024 um orçamento “pipi”, “betinho” e “bem vestidinho”, mas pouco ambicioso. Para conservar a imagem do Partido Social-Democrata (PSD) como partido de verdadeira oposição, o atual primeiro-ministro tem selecionado muito cautelosamente as palavras para convencer os portugueses de que está a trazer uma verdadeira mudança para o país. Nas últimas semanas, como se já não bastasse a descoordenação no que toca ao relacionamento com os outros partidos, com deputados do PSD a prometerem aprovar o nome dos nomes propostos pelo Chega à presidência da Assembleia da República e, ao mesmo tempo, figuras destacadas da Aliança Democrática (AD) a dizerem que não poderá haver qualquer acordo com o Chega (nomeadamente Nuno Melo e Paulo Rangel), Montenegro convida muitos portugueses não-socialistas a afirmarem “eu bem disse” (I told you so) depois de dar a conhecer algumas políticas fiscais propostas pelo seu governo ao país. No que toca à redução das taxas de IRS em todos os escalões à exepção do mais alto, o “face a 2023” quer dizer, na verdade, face ao que já estava previsto no orçamento de estado aprovado pelo Partido Socialista (PS), com o qual o secretário-geral do PSD, Hugo Soares, já admitiu privilegiar no diálogo interpartidário. Afinal, o partido “com um vazio imenso para oferecer” a Portugal, que “repete fórmulas gastas” baseadas no “passado” e na “geringonça”, nas palavras no talvez mais subestimado ex-primeiro-ministro português, Passos Coelho, é com quem se mais dialoga na construção de uma alternativa ao mesmo. Lá foi a maioria de direita, pedida explicitamente pelo povo, por água abaixo.
Logo no seu sumário executivo, o Programa Eleitoral da AD contém uma alínea intitulada “As Nossas Reformas”. Uma das reformas ficais aí mencionadas é a “redução do IRS para todos, com redução das taxas, especialmente para a classe média”. A isso segue-se a uma outra alínea que diferencia a AD do PS e em que há uma enumeração sucinta dos erros cometidos pela governação de mais de oito anos deste partido. Um desses erros, que não deixa de ser rejeitado, é a “resignação com a carga fiscal máxima e recusa em baixar impostos”. No primeiro capítulo, “Menos impostos sobre as famílias e sobre o investimento”, admite-se que, nos últimos anos, se agravou “uma política forte de tributação dos rendimentos de trabalho”, o que se traduziu numa “desconsideração pelo esforço individual e pelo investimento em educação realizado”. No mesmo parágrafo, descreve o contexto dos últimos anos: lamenta-se “os níveis de rendimento” que são “sujeitos a brutais taxas de imposto são irrisórios quando comparados com os dos países europeus mais desenvolvidos, que concorrem pela atração dos nossos trabalhadores mais qualificados”; “o investimento (e a poupança) são também fortemente penalizados fiscalmente”. Daí que “a reforma fiscal proposta pela AD” tivesse como objectivo central, entre outros, “a redução gradual e sustentável da carga fiscal, com prioridade para a redução do IRS e em especial para os jovens até aos 35 anos”. Concentrar-se-ia “o esforço da redução de impostos” no IRS, “especialmente sobre o trabalho, pensões e poupança”. Prevê-se que essa “redução da carga fiscal” tenha pelo menos dois efeitos: “a aceleração do crescimento económico” e a “ampliação das bases tributárias”, que não devem ser concretizados sem uma “racionalização dos benefícios fiscais dispersos”. Decorrente dessas ideias, uma das medidas apresentadas pelo Programa da AD foi a “redução do IRS até ao 8º escalão, através da redução de taxas marginais entre 0.5 e até 3 pontos percentuais face a 2023, com maior enfoque na classe média”.
Na segunda semana de Abril, o ministro das finanças, Joaquim Miranda Sarmento, em entrevista a José Rodrigues dos Santos, disse que a proposta de redução de IRS deveria situar-se um pouco acima dos 200 milhões de euros, tendo previsto igualmente que a classe média seria a quem mais viria a beneficiar. O Governo da AD anunciou um corte do IRS de 1500 milhões de euros, mas este valor já contemplava os 1327 milhões de euros previstos no orçamento de 2003, ainda durante o governo PS.
Lá teve de vir Hugo Soares ao programa “É ou Não É” da RTP defender o primeiro-ministro, garantindo que ele “não mentiu nem omitiu” sobre a redução do IRS e que a medida não diverge do que esteve previsto no programa eleitoral da AD, entretanto tornado programa de governo. Lá teve de vir um debate de urgência com a ausência do ministro das Finanças, no qual o ministro dos Assuntos Parlamentares, Pedro Duarte, a secretária de Estado dos Assuntos Fiscais, Cláudia Reis Duarte, e o secretário de Estado dos Assuntos Parlamentares, Carlos Abreu Amorim, só mereceram a defesa dos partidos com assento parlamentar e integrados no executivo, PSD e CDS. Lá tivemos de dar razão a deputados do PS, incluindo a Alexandra Leitão. Pelo menos em parte, quando a anterior ministra da Modernização do Estado e da Administração Pública afirmou que correspondia a apenas 200 milhões de euros a “grande medida eleitoral da AD”: “88% da medida do PSD é, afinal, do PS”. Segundo as contas apresentadas até há alguns dias atrás, enquanto as medidas de IRS propostas pelo actual governo resultariam em 1500 milhões de euros, 1327 milhões de euros já teriam sido implementados pelo Orçamento de Estado para 2024, ainda da iniciativa de um executivo do PS.
Na semana seguinte, com um executivo provavelmente muito traumatizado por ter sido alertado quanto a apropriações das medidas aprovadas por um executivo do PS e por não parecer fazer a diferença relativamente ao partido de centro-esquerda, Luís Montenegro, no final de uma sessão do Conselho de Ministros de uma sexta-feira, anunciou que o seu governo iria propor uma diminuição das taxas em sede de IRS até ao 8º escalão, após a revisão das contas. Segundo o primeiro-ministro, a redução corresponde, após feitos alguns esclarecimentos, a “mais 348 milhões de euros de redução face ao que estava previsto no Orçamento de Estado” do Governo PS e que iria totalizar “1191 milhões de euros”. O Governo assume-se, agora, como o responsável por um alívio de IRS de 1539 milhões de euros face a 2023. Sabemos o seguinte: apenas o 9º escalão não terá descida de taxa e 97% do alívio fiscal (de 1539 milhões de euros) beneficiará as famílias até ao penúltimo escalão (8º); 90% do alívio fiscal será concentrado nas famílias até ao 7º escalão (que auferem até 51997 euros anuais); 77% do alívio fiscal concentrar-se-á nas famílias até ao 6º escalão (que auferem até 39791 euros anuais); para os 2º e 3º escalões (que auferem entre 7703 e 16472 euros anuais) foi proposto um alívio superior ao do programa eleitoral. Mais concretamente, as taxas de IRS, do Orçamento de 2024 para a proposta do Governo de Luís Montenegro, mudarão da seguinte forma: a taxa aplicada ao 1º escalão passará de 13.25% para 13%; no 2º escalão, de 18 para 17.50%; no 3º escalão, de 23% para 22.50%; no 4º escalão, de 26 para 25.50%; no 5º escalão, de 32.75 para 32%; no 6º escalão, de 37 para 34%; no 7º escalão, de 43.50 para 43%; no 8º escalão, de 45% para 44.75%. Isto tudo, claro, se a “reforma” for implementada.
A nós, cidadãos portugueses e contribuintes, o que é que isto tudo nos diz respeito? Podemos ficar completamente descansados com os efeitos práticos desta medida do programa eleitoral e de governo da AD? Iremos beneficiar de cortes de impostos, é claro. Mas como é que esta “reforma” afetará os portugueses com salários mais baixos ou medianos? Na verdade, a mãozinha que toca na carteira de alguns portugueses pode deixar-lhes não mais do que 5 euros do que o costume. Por exemplo, para que a diferença chegue a 30 euros líquidos todos os meses é preciso que o contribuinte receba um salário bruto de 3000 euros por mês. Segundo um estudo da Ernest & Young, é neste patamar que há uma maior variação face às mudanças em sede de IRS que o Governo de António Costa já tinha implementado. Para que um solteiro sem filhos que se encontre nesse nível de rendimento, a diferença corresponde a cerca de 31 euros por mês, ou a 438.06 euros por ano, em termos anuais. Já para os contribuintes que recebam o salário médio em Portugal (1505 euros brutos mensais), de acordo com o mesmo estudo, um solteiro neste patamar de rendimento (que corresponde a 1131 euros líquidos), as alterações no IRS garantirão um aumento de 65,22 euros anualmente ou cerca de 4.65 euros mensalmente. Se falarmos num agregado composto por um casal e por dois filhos que ganhe 1500 euros brutos por mês, receberá uns 9.3 euros adicionais por mês. Os que recebem cerca de 1300 euros brutos por mês notarão ainda deverão reparar menos no “alívio fiscal”. Espera-se neste patamar uma poupança anual de cerca de 51.22 euros, ou cerca de 3.65 euros líquidos todos os meses). No caso de um contribuinte casado e responsável por um ou dois filhos, a diferença será ainda menor: a poupança atinge aqui os 35.24 euros anuais, ou 2.5 euros mensais. Já aqueles que recebem 1300 euros líquidos por mês, nos quais podemos encontrar os contribuintes solteiros com um rendimento bruto mensal médio de 1750 euros (aproximadamente 1289.16 euros líquidos mensais), a diferença todos os meses chega aos 5.91 euros. Para um casal sem filhos em que cada um dos membros aufira os mesmos valores mensais (que no total perfaz 3500 euros brutos), a diferença todos os meses será de 8.95 euros. No 3º escalão, o mesmo estudo indica que um contribuinte solteiro e sem filhos que receba 12600 euros brutos anuais (900 euros por mês), a diferença com as alterações propostas pela AD corresponde a 72 cêntimos por mês.
Um estudo de outra consultora, a PwC, indica que um agregado familiar composto por um casal e um filho ou dependente, que receba 4 mil euros brutos, a diferença da proposta da AD face àquilo que o anterior Governo colocou em vigor é de 1121.39 euros anuais, ou cerca de 80 euros todos os meses. Já um solteiro com um filho nas mesmas condições de obtenção de rendimento, a diferença seria de 560.69 euros, ou de cerca de 40 euros todos os meses.
A AD revelou, durante a campanha, competência e objectividade no que toca à identificação de muitos problemas e desafios que Portugal enfrenta, problemas esses que jamais seriam resolvidos com um aparelho de estado dominado por um partido como o PS, que em 2015 não hesitou em fazer acordo com partidos que se incomodam com a vigência de um regime de eleições livres, capitalista, integrado na Zona Euro e na Aliança Transatlântica. O PS, finalmente, ficará na história como o partido de centro-esquerda que esteve disposto para mais do que falar e dialogar com aqueles que mais se apegam a um dos parágrafos mais importantes do preâmbulo da nossa Constituição: o “abrir caminho para uma sociedade socialista”. Como se isso fosse compatível com a meta “de assegurar o primado do Estado de Direito democrático”.
Segundo um estudo divulgado em Janeiro de 2024 pelo Instituto Mais Liberdade, conjugando o valor do PIB per capita em Portugal em 2022 (79% do PIB da União Europeia) e o valor da carga fiscal em Portugal (38% do PIB), é possível concluir que o esforço fiscal em Portugal foi, em 2022, igual a 113 (segundo o Índice de Bird), isto é, 13 pontos acima do valor médio da UE. Em 2022, portanto, o esforço fiscal era o 4º maior da União Europeia, tendo ficado apenas atrás da Grécia, da França e da Croácia. Em 2023, o PIB per capita de Portugal foi igual a 83% (do PIB da União Europeia), tendo permanecido no 18º lugar entre os estados-membros, sempre expresso em paridade do poder de compra. Os dados relativos ao esforço fiscal em 2023 ainda não estão disponíveis, mas o valor não deve ser muito diferente do de 2022. Em 2022, os quatro países da UE com menor esforço fiscal eram a Irlanda (em 1º lugar), o Luxemburgo, a Malta e a Holanda. É nestes países, assim como os poucos seguintes dessa lista, que os contribuintes estão mais capazes economicamente de cumprir com os seus encargos fiscais. Apesar de Portugal se situar mais ou menos a meio da tabela no que toca ao nível da carga fiscal, os rendimentos dos cidadãos de Portugal (medidos a partir do PIB per capita) são dos mais pequenos da União Europeia, o que resulta num nível de esforço fiscal mais significativo.
O mesmo Instituto, numa análise que contemplou todos os estudos publicados nas últimas décadas minimamente respeitantes ao impacto dos impostos no crescimento económico, excluindo meta-análises (técnica estatística que integra os resultados de pelo menos dois estudos independentes, sobre a mesma questão de pesquisa, combinado, numa única medida, os resultados desses estudos), concluiu que apenas aproximadamente um quinto (21%) dos estudos dedicados a este tema sugeriram a existência de um impacto positivo, significativo ou nulo dos impostos no crescimento económico. Os outros 79% indicam que os impostos acabam por ser um entrave ao crescimento económico, podendo mesmo ter um impacto negativo ou reversível.
Em Março de 2024, o Fraser Institute (Instituto Fraser), com sede no Canadá, publicou um relatório intitulado Enhancing Economic Growth Through Federal Personal Income Tax Reform, cujos co-autores são Jake Fuss e Milagros Palacios. Pensando no Canadá, os autores sugerem que o futuro da economia canadiana passaria pela reforma do sistema do federal personal income tax (imposto pessoal federal), que é o equivalente canadiano ao nosso IRS mas com três escalões, “através de reduções do imposto, ao mesmo tempo que a eliminação de vários abonos fiscais”. Esta reforma, segundo os autores, teria como efeitos o “impulso do crescimento económico e melhorar o incentivo para os empreendedores. Esse relatório refere um estudo de 2013 de demonstração de evidência empírica de que as taxas marginais de imposto “desempenham um papel substancial na influência do comportamento individual, como a opção por trabalhar mais horas durante um certo período de tempo, aceitar um novo emprego que envolva um salário maior e um horário mais alargado ou o investimento na educação individual”. Para além disso, parece haver uma concordância generalizada entre os economistas de que taxas de imposto marginais elevadas podem estar na origem de “efeitos macroeconómicos adversos”. Mais à frente, no capítulo intitulado Federal Personal Income Tax Reform, refere-se que investigações recentes revelam que os “impostos sobre os rendimentos pessoais”, se registarem taxas significativamente elevadas, “causam significativamente mais danos económicos por cada dólar de receita do governo obtida do que outra formas de tributação, tais como os impostos sobre vendas”. Para além disso, a redução das taxas do Federal Personal Income Tax tem dois efeitos previstos: a subida das taxas de crescimento económico e o aumento progressivo da base contributiva.
Contudo, desafios fiscais tais como uma despesa pública crescente, “défices persistentes, acumulação de dívida significativa e custos de juros de dívida” podem constituir obstáculos a qualquer reforma de um imposto ou do sistema fiscal em geral, pelo que a redução do Personal Income Tax, assim como, no caso português, o IRS, tem de ser acompanhada de outras medidas. Caso contrário, o défice público aumenta e a incidência dos desafios mencionados aumentam.
Ainda segundo o mesmo relatório, apesar de as estimativas mais “estáticas” tenderem a não apontar nenhum impacto da descida das taxas de imposto e portanto nenhuma alteração na base contributiva, as estimativas “dinâmicas” podem dar mais esperança: segundo as estimativas deste último tipo, por conseguirem englobar na sua análise mudanças comportamentais resultantes de mudanças nas taxas de imposto, acabam por sugerir que os “cortes em impostos podem impulsionar a economia e gerar receitas adicionais para compensar a perda inicial das mesmas”. Os autores deste relatório publicado pelo Fraser Institute referem dois estudos norte-americanos dos quais se extrai, respetivamente, o seguinte: “o corte de um ponto percentual na taxa média” do personal income tax “aumenta o PIB per capita em 1.4% no primeiro trimestre da reforma e até 1.8% após o terceiro trimestre”; “a descida em um por cento da taxa respetiva ao escalão superior do imposto aumenta o PIB em 0.78% no terceiro ano após a mudança fiscal”.
Podemos, é claro, deduzir que o PS estava a tentar apresentar ao país um programa eleitoral de pendor mais reformista que o habitual. Pelos motivos mais eleitorialistas, é claro. Isto se consideramos um corte no IRS de pouco mais de 1300 milhões de euros “reformista”. É preferível chamarmos a isso uma “generosidade ligeira e espontânea”. Os partidos à direita do PS, dando mais atenção aos partidos com assento parlamentar (por serem mais propícios a definirem a agenda política e a influenciar o executivo), deveriam ser os que actuam mais conforme a convicção de que taxas de imposto elevados não acarretam necessariamente mais receitas e que o partido merece ir noutra direção. Não obstante isso, o PSD e o CDS não parecem ainda suficientemente dispostos a fazer reformas estruturais que abram a porta a um novo ciclo em que a estaticidade e o atraso promovidos pelo PS deixem poucas migalhas.