O regime ou sistema democrático não é uma espécie de religião laica, com a transferência directa da infalibilidade do Deus do Ancien Règime – que pela Sua graça tornava sagradas as dinastias – para o conjunto dos cidadãos eleitores. É uma forma de governo que procura um modelo consensual, pacífico e ordeiro de institucionalizar a escolha dos representantes de uma comunidade nacional, de um povo.

A sua legitimidade não vem, assim, de uma qualquer superioridade ético-política, mágica ou misteriosa, de conteúdo revolucionário ou conservador; vem do facto de se socorrer de um processo histórico que, alicerçado na aceitação de determinadas regras de jogo e com base em princípios de liberdade de opinião e de respeito pela opinião dos outros, procura tornar governável o Estado. Como as opiniões são diferentes – excepto quanto à aceitação da prevalência da opinião maioritária – não pode haver descriminação de opiniões.

Os valores políticos, as normas de orientação colectiva, as regras sobre o público e o privado, o respeito pela vida, os usos e costumes permitidos ou punidos – são a expressão dos programas ou projectos políticos que os partidos admitidos a concurso, dentro da Constituição, propõem ou põem em discussão e levam a votos. Querer pôr este princípio em questão, é pôr em questão o regime democrático, é viciar o jogo, desencorajar a participação e corromper o sistema.

Vem isto a propósito da indignação, real ou simulada, em painéis de debate e discussão televisivos, contra um partido-pária que ousou apresentar como lema “Deus, Pátria, Família e Trabalho” – coisas, aparentemente, malditas, escandalosas e proscritas, por terem sido já o apanágio do “fascismo” doméstico do Estado Novo de Salazar.

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Sobre a inutilidade da História das Ideias Políticas

A discussão sobre o “fascismo” do Estado Novo é uma discussão que não vale muito a pena ter, num caldo político, intelectual e social em que, por resignação, ignorância ou táctica, se aceita a palavra como sinónimo do antigo regime ou se esgrime como insulto indiferenciado.

De qualquer forma, o Manuel Lucena, que dava importância a coisas como a História das Ideias Políticas, tinha um argumento interessante e importante sobre o assunto, que talvez valha a pena aqui repetir: o Estado Novo tinha aspectos do fascismo-regime mas pouco ou nada tinha que ver com o  fascismo-ideologia nem com o fascismo-movimento, até porque nascera da Ditadura Militar, e não de um movimento político revolucionário que disputara o poder nas ruas com comunistas e socialistas, fazendo depois da Marcha Sobre Roma um pacto com as forças conservadoras da sociedade italiana.

O Estado Novo resultara, primeiro, do fracasso dos seus antecessores, que tinham imposto um jugo oligárquico de 16 anos num quadro teoricamente liberal e “democrático”, mas que a violência tornara monopolista; depois, de uma vaga europeia autoritária, condicionada pela ameaça comunista; finalmente, de um contrato entre os militares, sem projecto político próprio, com Salazar, que tinha um projecto político. Há pontos comuns entre o projecto salazarista e o fascismo – o nacionalismo, o anti-parlamentarismo, o autoritarismo –, mas o fascismo (apesar da Concordata de Latrão) tinha um espírito nietzschiano, pagão, e era estatocrático, sendo o Partido, o PNF, um elemento essencial no poder e do poder. Bem ao contrário, o salazarismo era nacional-conservador e social-católico. Não pretendia, pela política, mudar a sociedade, mas antes mantê-la como estava. Pertencia à direita conservadora, enquanto o fascismo pertencia à direita revolucionária. Os fascistas – e Mussolini em particular – queriam, pelo menos ideológica e idealmente, “viver perigosamente”; Salazar queria que os portugueses vivessem habitualmente.

Assim também a União Nacional, ainda que fosse a única organização de cariz político permitida no Estado Novo, funcionava como uma mera plataforma para a selecção e apresentação de candidatos à Assembleia Nacional; era uma organização que, como tal, não riscava quase nada nas decisões políticas e à qual os ministros não tinham de pertencer. Ver o Estado Novo como um regime totalitário de partido único – como o hitlerismo, o fascismo italiano ou o comunismo soviético – é não ver ou falsear a realidade.

Deus, Pátria, Família, Liberdade, Igualdade, Fraternidade

“Deus, Pátria, Liberdade e Família” é uma divisa de Afonso Augusto Moreira Pena, o 6º Presidente do Brasil, entre 1906 e 1909. Pena era natural de Minas Gerais e distinguiu-se no movimento abolicionista. Foi várias vezes ministro durante o Império e um dos introdutores na República de um certo espírito tecnocrático e industrialista. Não terá sido propriamente um fascista, ou sequer um proto-fascista.

“Deus, Pátria, Liberdade e Família”, na versão de Pena, “Deus, Pátria e Família”, na versão salazarista, ou “Deus, Pátria, Família e Trabalho” na versão de André Ventura, são enunciados de valores políticos, nacionais e conservadores que, com esta enumeração ou outra, estão presentes na maioria dos ideários conservadores europeus e euroamericanos. Estes e outros valores proclamados – tais como Liberdade, Igualdade e Fraternidade ou Laicismo, Humanidade, Progresso, Socialismo (que têm uma bem mais longa e sangrenta história totalitária e de manipulação) – tanto podem ser defendidos autoritariamente, em ditadura, como podem ser defendidos democraticamente, em democracia.

Quando já não é proibido proibir

Achar que Deus, Pátria e Família é “fascista”, mesmo na pouco esclarecida qualificação do regime português, só pode resultar de ignorância ou táctica. Achar que, a partir de um centro enviesado à esquerda que se autoproclama democraticamente imaculado, podem traçar-se diabólicas linhas vermelhas para um lado e angélicos arco-íris inclusivos para o outro, é mau sinal. Achar que, independentemente da votação obtida, há um partido e um conjunto de eleitores que devem ser, à partida, excluídos da possibilidade consagrada pela praxe constitucional de ver eleito um candidato, “seja ele quem for”, a vice-presidente do Parlamento é, pela lógica do regime, indefensável. Achar natural que esse mesmo partido fique a um canto da Assembleia com orelhas de burro enquanto os “partidos de bem” avançam, cantando e rindo, para as “conversas em família” com o primeiro-ministro que quer falar com todos, é uma prática de discriminação aleatória que tem tudo para correr mal.

É esta narrativa e esta prática ideologicamente enviesada para aguentar no poder e defender os interesses dos que se assumem como “mais iguais que os outros” que começa a levantar cada vez mais dúvidas a cada vez mais pessoas. Afinal, o que distingue a democracia liberal dos outros regimes é a aceitação e integração, nas suas regras de jogo, de todas e quaisquer forças políticas que, independentemente dos valores que defendam, actuem pelas vias pacíficas e de acordo com as leis constitucionais e civis. Mesmo as iliberais.

Não creio, por isso, que o presente policiamento ideológico e as “linhas vermelhas” com que se procura segregar um partido e os seus eleitores vão sequer beneficiar quem está no poder e muito menos o regime. Limitam-se a expor sob uma luz cada vez mais crua a exemplar democraticidade dos que se acham “donos disto tudo”.