O pequeno homem no topo da escada é um gigante. A sua figura perde-se na imensidão da enorme tela que pinta. O pincel marcha a negro e cinzento sobre a brancura da tela. As imagens sucedem-se, dia após dia, numa dança da morte saída do espírito do artista. Dum só jacto, como Saturno cuspiu todos os seus filhos, também Picasso cuspirá Guernica. Um sopro. Um frémito. Uma imediatez inaudita. Começada algures nos primeiros dias de Maio de 1937, ficará concluída a 3 ou 4 de Junho do mesmo ano. Num mês apenas, o pequeno gigante pintará uma obra com mais de 27 metros quadrados! A sua edificação será caótica, seguindo, de resto, o método habitual que apregoa – executar uma soma de destruições. Sabemos isso graças às fotografias que acompanham todo o processo criativo. Do outro lado da câmara, encontra-se Dora Maar.
Dora Maar pagará caro a sua aproximação a este «pequeno» Saturno. À semelhança do titã, também Picasso consume os que o rodeiam. Um a um, todos sucumbirão ao seu apetite voraz: mulheres, amantes, filhos, amigos… Dora não será excepção. O seu rosto ficará inscrito na grande tela que fotografa. A ela, que não podia ter filhos, Picasso dará o papel da mãe que chora o filho morto. Uma Pietà iluminada pelas chamas. Rosto espetado no negrume do céu. Boca que solta um grito mudo. Os seios pendem em direcção ao corpo inanimado da criança nos seus braços. Crueldade ou acaso? Teria Dora Maar consciência desse facto? De que seria doravante conhecida como a mulher que chora? Que ficaria reduzida a um esgar, a uma máscara de tormento?
Henriette Theodora Markovitch nascia em Paris a 22 de Novembro de 1907. Em 1926, ano em que frequenta a Academie Julian, adoptará definitivamente o seu nome de guerra – Dora Maar. Será com esse nome que conhecerá Picasso em 1935 através de um amigo em comum, Paul Éluard. Picasso tem cinquenta e quatro anos, Dora vinte e oito. A relação terá início no ano seguinte. O encontro será celebrizado pelo cinema no magnífico Sobreviver a Picasso de James Ivory, baseado no livro homónimo de Françoise Gillot: «Pablo contou-me um dos seus primeiros encontros do Deux-Magots. Ela trazia luvas pretas bordadas com florzinhas róseas. Tirara as luvas e pegara numa faca comprida e pontiaguda, que cravava na mesa, entre os dedos afastados. De vez em quando, falhava o alvo por uma fracção de milímetro e a mão ficava coberta de sangue. Pablo ficara fascinado».
Esse instante marcará uma mudança na sua vida. Passam a coexistir duas Doras. A artista, fotógrafa e musa dos surrealistas e a amante de Picasso. A primeira anular-se-á a favor da segunda. Dora ajoelha-se à sombra do grande artista e passa a ser La Femme invisible. Vivem a dois passos. Ela no número 6 da Rue de Savoie e ele no número 7 da Rue des Grands-Augustins. Quase porta com porta.
Françoise Gillot, também ela amante de Picasso, conhece-o em 1943. Ela tem vinte e um anos. Picasso tem sessenta e dois. Encontram-se no restaurante Le Catalan, a escassos metros da casa do pintor. Picasso encontra-se acompanhado por Dora e por outras três pessoas. Olha para a mesa de Françoise, que se encontrava acompanhada por uma amiga e pelo actor Alain Cuny, levanta-se e força a apresentação. Cuny faz a honras. Françoise conta-nos o grau de subserviência que nessa época caracterizava já a relação de Dora Maar com Picasso: «Nos anos que se seguiram, Dora sofreu o curso instável do humor de Pablo. Ela vinha raramente à Rue des Grands-Augustins. Ele telefonava-lhe quando a queria ver. Ela nunca sabia se de repente não iria almoçar ou jantar com ele, mas tinha de estar sempre pronta para sair se ele lhe telefonava, e em casa se ele ia visitá-la».
Dora Maar mergulha de cabeça neste caos e quebranta-se. Tudo aquilo que é tocado pela aura do mestre sucumbe a uma espécie de sortilégio. A outrora musa dos surrealistas, artista por direito próprio, fotógrafa talentosíssima, obscurece. Apaga-se lentamente. Glória em fogo-fátuo. Cede à depressão, às crises místicas. Desorienta-se. Provoca escândalo nas ruas… Acaba internada na clínica de Jacques Lacan a pedido de Picasso. Éluard acusa-o de ter provocado este fim tão cruel. Ele sabe que sim, mas negará até ao fim. A Dora Maar artista dará lugar ao estranho e sombrio estatuto de Dora Maar ex-amante de Picasso. Nada mais do que isso. Uma máscara que nunca mais conseguirá descolar do rosto. Picasso parte para o sul e já não retorna a Paris.
Depois do internamento, Dora regressa por fim à sua casa da Rue de Savoie, onde passará o resto da sua vida encerrada. À sua volta, acumulará as ruínas de uma existência: memórias de Picasso, mas também inúmeras obras da sua autoria: pinturas, fotografias e objectos surrealistas. Um verdadeiro dédalo das suas vivências e desencontros. Nasce o mito da Dora Maar isolada, anti-social e solitária. O que conhecemos destes seus anos de ascetismo deve-se, em parte, aos esforços de Victoria Combalía. Em 1994 conseguirá chegar à fala com a artista. No lugar de um impositivo «Não!» que todos lhe faziam adivinhar, Combalía encontrou uma mulher inteligente, afável e com uma memória prodigiosa. Dora nunca aceitará o encontro presencial. Manterá intacta a sua coquetterie até 1997, ano da sua morte. Dora Maar – La Femme Invisible, de Victoria Combalía, é uma leitura obrigatória para quem quiser entrar na vida desta artista apaixonante.