Como não podia deixar de ser, face ao título que decidi dar a este texto, impõem-se umas palavras prévias para o explicarem. Não é minha intenção chamar a quem quer que seja de estúpido. Achei apenas que o já comum parafrasear das famosas palavras de James Carville – «It’s the economy, stupid» – se adequavam na perfeição como título para as palavras que se seguem. Nada mais; nada menos.

Pois bem, não é preciso ser um Apolo ou um Céos para vislumbrar que a confusão crescente, no cada vez mais “nosso” Ocidente autofágico, tem tido repercussões na própria Igreja Católica. Outrora, um cristão teve a ousadia de falar de uma «fé que foi dada de uma vez para sempre» (Jd. 3); hoje é quase um tabu ou uma ofensa pensar-se uma tal coisa. Há, de facto, a tentativa de se falar de, e querer impor a perspetiva de uma fé contingente, mutável, provisória, circunstancial. Uma fé válida aqui, mas não ali; uma Fé entendida de uma forma acolá, e de outra acoli.

Talvez seja uma consequência inevitável de uma prevalência do pontual pastoral mudado paulatinamente, em vez do perene dogmático na essência da sua formulação. Não vejo como é que daqui não possam haver confusões. Mais ainda quando vivemos intensamente um “Sínodo para Sempre” – se me permitem a evocação de uma das grandes obras da literatura que foi publicada há justamente 50 anos: “The Forever War” de Joe Haldeman. Mas a pergunta que coloco é: tal dicotomia é necessária e inevitável? Não é o Catolicismo caracterizado pela síntese inclusiva em vez da divisão exclusiva?

Abordemos, a jeito de exemplo e desde a perspetiva de alguém que não é especialista na matéria, a atitude Católica ante a formação catequética dos seus membros. Creio que podemos partir de alguns pressupostos. Desde logo, creio que é pacífico que podemos assumir o esquema “pertença” – “vivência” – “crença” – “entendimento”. Depois, estimo que é igualmente pacífico que as competências catequéticas apresentadas André Fossion: competência teológica; competência cultural; competência pedagógica; competência organizacional e, por fim e como um todo que envolve as demais competências, a competência espiritual. Enfim, acredito que não pode haver maturidade crente sem uma experiência do encontro com Jesus Ressuscitado nas nossas vidas.

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Mas será que ainda acreditamos e praticamos o facto de que, como afirmou Joseph Ratzinger, a catequese é a comunicação orgânica de «uma fé [que] não é, antes de mais, um material para experiências intelectuais, mas sim o ‘fundamento sólido’, a hipóstase’, diz a “Carta aos Hebreus” (11,1), sobre a qual podemos viver e morrer»? Ou que, no dizer de Jean Daniélou, «a catequese é um meio se de conhecer a fé que já se acolheu e escolheu»?

Em suma, e mediante palavras do presente Papa: fazemos dela um encontro, absolutamente necessário numa primeira fase, «com um Jesus que nos ama e não nos abandona» para, depois, termos «uma fé madura, clara, teológica, pedagógica e socialmente sustentada»? Permitimos, então, que nela ocorra uma ‘aísthesis noerá’? Um encontro estético (percepcional) que une o ‘pneúma’ (espírito), o ‘noûs’ (entendimento) e a ‘kardía’ (coração)? Ou ficamos por uma mera estética de “pet projects” anódinos, irrelevantes, sem conteúdo doutrinal e que da fé no Deus-Amor pode facilmente levar à fé no deus-amora?

O referido encontro com o Ressuscitado é direito intrínseco dos dons comunicados a todos os batizados, donde trata-se de um dever indeclinável da Igreja, de toda a Igreja, potenciá-lo. Mas também é necessário traduzi-lo doutrinalmente, com cuidado pedagógico e cultural. Ou seja, mesmo que a doutrina, que é a tradição, seja clara, é preciso que as suas explicações sejam convincentes são para que a fidelidade à novidade possa ocorrer de tal forma que a teologia não a contradiga irremediavelmente.

Eis, numa leitura pessoal que só me compromete a mim, a razão do Bispo de Coimbra [Dom Virgílio Antunes], depois da última visita coletiva dos Bispos portugueses a Roma, ter dito: «o espírito e a verdadeira renovação nascem das ideias, nascem da reflexão, nascem da teologia, nascem da doutrina». Pessoalmente não podia estar mais de acordo, embora não me incomode minimamente que pensa de um modo diferente. A Igreja é como uma feira, onde há lugar para quase todos num equilíbrio de muitas sensibilidades unidas à volta de Jesus.

A questão coloca-se, então, ‘no que é’ a doutrina e qual é o seu ‘papel’. Seguindo Alister McGrath, diria a doutrina se trata de um grande mapa de sentido que, justaposto a outros que a enriquecem e por ela são enriquecidos para se ter uma visão mais ampla, traduz a realidade com sabedoria, bem-estar e admiração. Continuando com o mesmo autor em linha de horizonte, atestaria que a, por vezes tão odiada ‘doutrina’, é o trespassar e o verter conceptualmente da experiência percecionada de sentido em Cristo de modo a que a mesma se torne uma nova forma de viver afetiva e efetivamente e a melhor forma de explicação da realidade e do real no contexto de uma vida de adoração a Deus, amor a todos os aos outros e serviço às comunidades concêntricas ou excêntricas em que se está inserido.

Para isso, não há que ter medo de que a doutrina, sem desprezar nada da teologia passada – antes aproveitando o melhor desta “fé que busca ser entendida” –, seja uma espécie de laboratório que: testa respeitosamente as fronteiras; elabora pontes articuladas entre saberes distintos e inclusive entre aspetos dela mesma que até então estavam isolados; marca uma identidade irredutível e exclusiva, mas aberta a todos os que a ela desejarem pertencer e viver segundo essa identidade; desabrocha ontologicamente um padrão de cognição coordenador; e, por fim, comunica coerência, compreensibilidade e ousadia teológica.

Em consequência, e segundo Bernard Lonergan, doutrinar é uma faceta do método teológico que, unida ao historiar pelo se ser razoável no julgar em contexto eclesial. Quer dizer: esse doutrinar requer uma relação necessária com o magistério e com os outros teólogos no momento da realização do trabalho teológico, dando grande atenção não só à estética, mas sobretudo à liturgia, ao símbolo, à Escritura e à Tradição. Aqui cruza-se a abertura a todas as formas de arte, que permitem uma ação baseada na experiência, no silêncio que maravilha e na evangelização do inconsciente de modo a que o catequizando absorva vivendo a fé antes de a explicitarmos.

Termino. E faço-o vincando que uma catequese sem doutrina é algo estúpido. Caminhamos para celebrar os 1700 anos do 1.º Concílio de Niceia, e tudo o que envolveu este nos recorda o que afirmei. De facto, «o desenvolvimento doutrinal visto na sua totalidade, tem quatro aspetos principais: um aspeto objetivo, um subjetivo, um avaliativo e um hermenêutico» [Bernard Lonergan], mostrando que, como em 325, o doutrinar é estudar e aprender, orar e depois ensinar sobre Alguém a Quem amamos e que nos ama. Eis a síntese de que eu falava no início deste texto: a doutrina mostra que, em grande medida, a teologia é uma atividade orante que abarca o dogma e a pastoral.