Depois da morte de George Floyd, assassinado por um polícia de Minneapolis no dia 25 de Maio, vários serviços de streaming reagiram da única forma possível. Imediatamente, retiraram do seu catálogo os filmes e as séries de televisão que incentivaram o homicida a cometer tão bárbaro crime.

A Netflix retirou as séries humorísticas “Little Britain”, “Come Fly With Me”, “The Mighty Boosh” e “The League of Gentlemen”. A UKTV, da BBC, retirou um episódio de “Fawlty Towers”, a série de John Cleese. E a HBO retirou “E Tudo o Vento Levou”. Segundo os responsáveis pelas decisões, qualquer um destes títulos tem apontamentos racistas, fruto da época em que foram produzidos, que já não fazem sentido hoje em dia.

Em vez de fazer como antigamente, em que os objectos culturais datados acabavam por perder interesse para o público e deixavam de ser vistos, as empresas de streaming, adiantaram-se e retiraram-nos de imediato, na tentativa de estancar desde logo o problema da violência policial sobre negros.

Incrivelmente, não funcionou: na 6ª feira, em Atlanta, apesar de já não poder assistir a estas séries na Netflix, outro polícia americano matou um negro. Confesso que desta não estava à espera. Se calhar, o polícia tinha o DVD do “Come Fly With Me” e nessa tarde viu Matt Lucas a fazer de senhora caribenha. Como é óbvio, depois disso, concluiu que era aceitável dar três tiros nas costas de um negro desarmado. É o mais provável. Eu, que já vi a série, só ainda não abati dois ou três negros porque não tenho arma.

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Parece evidente que estas retiradas não funcionaram. A violência racista continua a suceder. A conclusão é simples: a HBO e a Netflix vão ter de retirar ainda mais filmes e séries. Para começar, qualquer filme em que um negro seja mal tratado, porque dá justificação a um racista. Depois, qualquer filme em que um negro seja bem tratado, porque irrita um racista. E ainda qualquer filme sem negros, porque mostra a um racista que é giro haver uma sociedade sem negros. E qualquer filmes só com negros, porque enche um racista de medo de não haver espaço para si.

Eu apoio essa decisão. Menos filmes e séries, por favor. Tenho dúvidas que isso salve vidas, mas talvez dê para salvar o meu casamento. É que neste momento, tenho Netflix, HBO, Amazon Prime e videoclube da MEO, o que significa que, todas as noites, discuto com a minha mulher para decidir o que vamos ver. Há excesso de escolha. Metade do serão é passada com os dois aos berros. A outra metade é passada só com um aos berros, o que perdeu a discussão e fica a gritar: “Eu não disse?  O “Peaky Blinders” é uma porcaria. Amanhã escolho eu. Vais levar com “Anatomia de Grey” até ficares assado!” Se não tivermos tantas alternativas por onde escolher, discutimos menos. Basta ver que havia muito menos divórcios quando só tínhamos RTP1 e RTP2.

Agora, reconheço que há diferenças na forma como as plataformas de streaming estão a limpar as suas videotecas. Enquanto a Netflix, por exemplo, tira a “Little Britain” para sempre, a suspensão do “E Tudo o Vento Levou” é apenas temporária. A HBO considera que a forma como se representa a escravatura no filme não é apropriada para os tempos em que vivemos e por isso só voltará a disponibilizar o filme depois de fazer um enquadramento histórico que ensine aos espectadores que a realidade era diferente do que se vê no filme. Ou seja, a Netflix acha que somos todos más pessoas e que só precisamos de uma desculpa para desatar aos tiros a negros, daí retirar as séries que servem de gatilho; já a HBO, acha que somos todos burros e, devidamente catequizados, podemos assistir aos filmes perversos. Apesar de tudo, prefiro a primeira. Acho melhor ser considerado um sacaninha do que um idiota. Sempre me é dado um bocadinho mais de livre arbítrio.

Atenção, não acho mal que certos filmes venham com contexto histórico. Gosto muito de história e de tudo o que ajude a perceber melhor a época retratada no filme, assim como a época em que foi produzido. Aceito sem problemas que “E Tudo o Vento Levou” seja acompanhado pelo tal enquadramento histórico. Desde que, claro, esse enquadramento histórico por sua vez venha acompanhado de um enquadramento histórico que ajude os espectadores a compreenderem melhor a época em que se censuram obras de arte. Para não acharem que é normal. Pode ser uma coisa deste género:

«No início do séc. XXI, depois de algumas décadas em que vigorou nas democracias a ideia de que as pessoas são livres e responsáveis pelos seus actos e que, como tal, podem ter acesso a quaisquer representações artísticas sem que isso as leve a praticar malfeitorias, voltou a teoria, popular em tempos antigos, de que certas obras de arte endrominam quem as vê. Segundo essa teoria, as pessoas normais não têm capacidade para distinguir a ficção da realidade, nem o bem do mal. Assistem a sketches humorísticos e são inspiradas a cometer homicídios. Ou consideram-se de tal modo ofendidas que desejam vingar-se cometendo homicídios. Ou sentem que a ofensa é uma tentativa de homicídio contra si. Daí ter-se imposto a mediação de uma autoridade intelectualmente esclarecida para decidir o que pode ser visto sem causar mortes.

Para enquadramento adicional, consultar também: “O Evangelho Segundo Jesus Cristo” e o veto de Sousa Lara a José Saramago; “Os Versículos Satânicos” e a fatwa a Salman Rushdie; Massacre do Charlie Hebdo; Ataque à sede da Porta dos Fundos; Arte degenerada; Index Librorum Prohibitorum.»

Assim, com o enquadramento histórico e com o enquadramento histórico do enquadramento histórico, o espectador que assista a “E Tudo o Vento Levou”, antes ignaro, agora besta enquadrada,  ficará a saber que: a) afinal, a escravatura não era aquela maravilha que se ouve dizer por aí; b) a liberdade individual também não; c) a escravatura tal como aparece no filme e as liberdades de expressão e de escolha tal como são garantidas pela Lei, são apenas versões romanceadas sem qualquer aderência à realidade.