Elon Musk foi nomeado “pessoa do ano” pela revista Time, e achámos relevante reflectir sobre esta nomeação, à luz de uma mundividência inspirada por David Deutsch que considera que “todos os males se devem a uma falta de conhecimento”. Qual a relação de uma coisa com a outra? Bom, sucede que julgando pelo tipo de atenção mediática que Elon Musk recebe, muitas pessoas provavelmente não irão perceber exactamente o motivo dessa nomeação, e daí a relevância deste artigo.

Pois, na verdade, pouco interessa que Musk se tenha tornado o homem mais rico do mundo; pouco interessam as controvérsias do twitter, os relacionamentos falhados, as piadas de mau gosto e menos ainda a “passa” de marijuana em directo, pois tudo isso acaba por se reduzir a bisbilhotices sobre a sua vida pessoal, quando o motivo da nomeação e desta reflexão se prende com as ideias que representa e não com falhas pessoais.

Interessa, sim, constatar que Elon Musk representa algo que tem vindo a tornar-se cada vez mais raro no Ocidente: Musk representa a ideia de optimismo em relação à civilização humana. Não o optimismo na sua acepção corriqueira de “copo meio cheio”, em que se age com uma esperança ingénua de que as coisas correrão bem, mas sim o optimismo como definido por David Deutsch: a crença de que é possível resolver os problemas que se nos deparam se fizermos uso da nossa racionalidade e do nosso entusiasmo. De facto, e fazendo jus a esta definição, Musk representa um farol num nevoeiro cultural carregado de pessimismo debilitante, manifestado sob a forma de cinismo, anti-humanismo e desesperança em relação ao futuro.

Musk compreende que tornar a espécie humana multiplanetária não é apenas uma necessidade, mas um projecto inspirador, reminiscente das missões Apollo dos anos 60 já não presente na memória da nossa geração. Encara a realidade de certos riscos existenciais para a espécie humana como um problema, e sabendo que a redundância planetária nos preservaria contra muitos desses riscos, delineou uma estratégia para resolver o dito problema.

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E no entanto é lugar-comum achar que o projecto de criar uma colónia humana em Marte é demasiado difícil ou mesmo impossível (pessimismo) ou imoral (anti-humanismo). Usam-se argumentos de que há outros problemas na Terra que se deveriam resolver primeiro, mas se tal argumento não fosse falacioso, então nenhum de nós seria moral em manter o nosso emprego, rotinas e estilo de vida cuja relevância também acaba por ser inadequada face à contribuição que poderíamos fazer em contextos sociais dramaticamente mais desfavorecidos planeta fora. É importante frisar que este tipo de argumento, que se opõe ao progresso humano em determinadas áreas por medo de que as consequências do progresso sejam inúteis ou deletérias, é em geral uma falácia, já que a ausência de progresso é determinantemente mais prejudicial, por não nos munir dos meios necessários para a resolução de novos problemas que possam surgir.

Tal falácia, que recebe o nome de “Princípio da Precaução”, acompanha a civilização humana desde que há registo e já há 500 anos Luís de Camões imortalizou esta mesma crítica na sua personagem do “Velho do Restelo”. Esses argumentos tendem a presumir que existiu algures no passado um estado de graça, um contexto de equilíbrio com harmonia da humanidade no mundo, no qual estaríamos numa bolha de segurança que, se não tivesse sido rebentada pelos progressos científicos e industriais, nos manteria num mundo mais seguro, livre de poluição e bombas atómicas. No entanto, tal estado de graça nunca existiu, nem poderá existir. A presença de problemas, muitos deles potencialmente fatais, é uma inevitabilidade da existência. Desde os primórdios da espécie humana que assim é. O que apenas podemos fazer é substituir velhos problemas por outros, novos e melhores, melhorando a condição humana ao longo desse percurso. Já não temos o problema de como não morrer de frio, ou de como não morrer com uma infecção dentária, dado que já há muito que criámos o conhecimento necessário para ultrapassar esses problemas, a ponto de hoje em dia nos parecem corriqueiros. Temos outros mais interessantes mas igualmente perigosos e difíceis de resolver. Esta constatação, de que os problemas não acabam, é óbvia para quase todos nós, mesmo que apenas de forma implícita. E isso leva muitos ao niilismo expresso acima, quando se esquecem de considerar que, lá porque continua a haver problemas, não significa que não estejamos melhor que antes. Aliás, o facto de existirem sempre problemas a ser resolvidos é fundamentalmente bom, porque significa que não existirá um tecto para o progresso que podemos realizar.

Voltando a Elon Musk, começámos acima por dar o exemplo da sua visão para a colonização de Marte, que ainda é apenas uma visão, mas o modus operandi dele tende a reger-se pelo optimismo Deutschiano em todos os aspectos, sendo outro exemplo disso a transição para a mobilidade eléctrica: desde o início que Musk foi transparente na sua intenção de que a missão da Tesla seria criar uma resposta para o problema do consumo excessivo de combustíveis fósseis. Quem o acusa de se estar a preocupar com a colonização de Marte quando há outros problemas na Terra, esquece-se de lhe reconhecer o mérito na abordagem muito directa que fez do problema das emissões resultantes dos meios de transporte. Identificou o problema e usou de criatividade para a sua solução; enquanto lhe chamavam imprudente, insensato e repetiam vezes sem conta que nenhuma companhia start-up poderia sublevar o domínio dos grandes fabricantes de automóveis já estabelecidos no mercado, Musk aplicou-se em criar novo conhecimento, resolver os problemas de engenharia que eram necessários para ultrapassar as barreiras então existentes a um carro eléctrico viável para as massas, e apostou nisso todo o seu futuro, hipotecando a sua fortuna na aposta de que iria ser bem sucedido nesta missão. O seu objectivo era tornar-se o homem mais rico do mundo? Não! O seu objectivo era resolver um problema que ameaça a humanidade, enfrentando com optimismo o que parecia aos outros ser um problema inultrapassável, sem se render ao princípio da precaução, sem se render ao niilismo, sem se render aos velhos do Restelo.

Na forma como forçou a que se estilhaçassem os lobbies do petróleo e se avançasse para a mobilidade eléctrica; na forma como reinventou o conceito de foguetão tornando-o mais eficiente, barato e especialmente reutilizável; na forma como pretende criar um “plano B” em Marte para preservação da humanidade; na forma como pretende abrir o acesso tecnológico à mente humana; na forma como encara todas estas ideias titânicas com uma mentalidade optimista de resolução de problemas com a criação de conhecimento e progresso, Musk relembra-nos que os problemas têm solução, relembra-nos o potencial infinito da racionalidade e engenho humano. Relembra-nos os ideais do Iluminismo, do qual somos herdeiros – e é por esta razão que merece a distinção de pessoa do ano da Time.