1. A atual conjuntura política é muito interessante. É-o do ponto de vista do observador que se serve da grelha de análise da Ciência Política. Admito que não o seja para quem governa (descontado o calculismo virado para o futuro, para eventualmente tirar partido – ao nível da imagem e no plano eleitoral – da confusão dos eleitores). Os cenários que se entretecem não são compatíveis com a prática política a que estamos habituados. O que pode infundir uma sensação de desordem e de desorientação nos eleitores, por não perceberem as manobras congeminadas no parlamento.
2. O palco recorrente tem sido a aprovação de medidas legislativas com o cunho da oposição. Como essa legislação não pode deixar de ser aplicada, quem a aprova assume a paternidade de uma forma original de governação: a partir da Assembleia da República, fruto da concordância entre os partidos das esquerdas e com a abstenção construtiva do partido de extrema-direita. O governo não tem encontrado condições para fazer aprovar propostas de lei que leva ao parlamento. O governo é feito a partir do parlamento e quem governa são partidos que não formaram o governo.
3. Algumas medidas aprovadas pelos partidos da oposição partiram da iniciativa do PS. A extinção das portagens nas SCUT é o melhor exemplo; também se pode oferecer o desagravamento do IRS como exemplo. A originalidade, que pode apenas ser parcial (já vou à fundamentação), encontra-se na identificação de medidas que os dois anteriores governos do PS não colocaram no plano das hipóteses. Durante os oito anos do consulado Costa, a eliminação das portagens nas SCUT esbarrou na irredutibilidade do governo. E o anterior ministro das finanças foi indiferente à devolução de parte dos ganhos fiscais de que o erário público beneficiou em virtude da espiral inflacionista. Medina quis ficar para a posteridade como o titular da pasta que deixou em legado o maior saldo orçamental da História da democracia.
4. Esta é uma originalidade que pode ser parcial. Não é Costa que lidera a oposição a partir do parlamento, é Pedro Nuno Santos. A agenda política do PS pode ser diferente por o partido ter um novo líder. A alteração de prioridades políticas é prática corrente, aqui e em todo o lado, quando uma nova liderança assume um partido. A questão que ficará por responder é contrafactual: se o PS tivesse ganho as eleições de março de 2024 e tivesse formado governo assente numa maioria parlamentar, o governo teria tomado a iniciativa de abolir as portagens e de aliviar a carga do IRS? Não há resposta para esta interrogação (a menos que o(a) leitor(a) descaia para a especulação e se entretenha a adivinhar intenções, o que não é aconselhável para uma análise não contaminada pela emocionalidade exacerbada). A interrogação é legítima, muito embora esteja destinada a perecer sem se encontrar com respostas.
5. Nunca, como em legislaturas anteriores, a geometria variável no parlamento foi tão acentuada. A pulverização parlamentar, com uma coligação vencedora que só conseguiria ter maioria se se unisse, ou obtivesse o voto favorável, dos outros dois partidos de direita, está na origem da geometria variável. Mas não é a única causa. O compromisso de a AD não fazer entendimentos pré e pós-eleitorais com o Chega criou o cenário propício à geometria variável. Sem o Chega, nem as direitas nem as esquerdas obtêm maiorias no parlamento. O que fez do Chega o partido charneira. Muitas vezes através da abstenção, que tem permitido a aprovação de legislação que reúne o voto favorável dos partidos das esquerdas.
6. Esta geometria variável é inédita e merece atenção. Podem-se antecipar várias explicações para o comportamento do Chega. O ressentimento por não ter sido incluído no arco de governação das direitas concorre como hipótese mais válida, instigando o comportamento vingativo: o partido de extrema-direita não tem aprovado as propostas de lei da coligação no governo e deixa passar muitas das propostas legislativas apresentadas pelo maior partido da oposição com o apoio dos restantes partidos das esquerdas. O Chega é o fiel da balança. No exercício deste papel tem-se inclinado, por omissão (abstenção), para a esquerda. O que não deixa de ser contraditório com o posicionamento ideológico e, sobretudo, com a retórica radicalizada do partido. Quem tira partido deste calculismo eventualmente suicidário é, em primeira linha, o PS e, em última instância, os demais partidos à sua esquerda.
7. Há outra dimensão paradoxal da geometria variável que tem dominado a legislatura: de acordo com a peregrina teoria de Rui Tavares, as esquerdas são maioritárias no parlamento porque as direitas estabeleceram um perímetro de segurança em relação ao Chega (E se não o tivessem feito, confirmando profecias autorrealizáveis de muitas esquerdas, seriam acusadas por se aliarem à extrema-direita…). Tavares não contará com a falta de comparência do Chega (se assim se considerar a sua abstenção metódica) na contabilidade de votos parlamentares que caucionam a aprovação de legislação com o cunho do PS e o apoio das restantes esquerdas. Podê-lo-á não fazer para não ficar refém de um desconforto irremediável: é a falta de comparência do Chega que valida a coligação informal dos partidos das esquerdas e a governação das esquerdas a partir do parlamento.
8. Os críticos de Costa-primeiro-ministro identificam a sua incapacidade de mobilizar reformas, o que foi manifesto sobretudo no terceiro governo por ter desaproveitado a maioria absoluta. O registo do novo líder do PS é diferente: voluntarista, hostiliza os adversários, parece comprometido com o “fazer” mesmo que seja mal feito, num registo que se assemelha à audácia de um forcado diante do touro. Governar a partir do parlamento, e do lugar da oposição, parece libertar o PS das algemas que ditaram a inércia dos governos Costa. Paradoxalmente, para o PS é mais fácil governar sendo oposição do que governo. O que só é possível pelo invulgar cenário político-partidário que caracteriza a legislatura.