No Público de dia 28 de Novembro, Ferreira Gomes, secretário de Estado em governos anteriores, publicou um texto intitulado “Qualificar para emigrar?” cujo destaque deixa no ar uma ideia falsa que convém aclarar – ”O nosso sistema educativo está a estimular a emigração qualificada enquanto esta é compensada por uma imigração menos qualificada.”
Em síntese, o autor considera que a introdução de novos mecanismos de acesso ao ensino superior, nomeadamente para os estudantes oriundos dos cursos profissionais, afeta a qualidade do sistema e provoca a emigração por excesso de habilitações. Assim, não se devem flexibilizar os critérios e deve aprofundar-se a oferta de cursos profissionais de modo a que quem os faz se fique por aí.
O debate sobre o sistema de acesso divide-se, grosso modo, entre os que desejam manter o essencial do que existe há décadas e os que pretendem introduzir mecanismos mais abertos e promotores de maior igualdade social no acesso. Se tivermos em conta que o sucesso académico é largamente influenciado pelo estatuto cultural e social das famílias, não será difícil perceber que um sistema de acesso unicamente baseado em classificações escolares é mais um elemento, a acrescentar a todos os outros, de promoção dos estudantes oriundos das famílias cujo capital cultural e meios financeiros são mais elevados.
Os problemas recorrentes da identidade dos politécnicos refletem isto mesmo e quando se fala da sua passagem a universidades toca-se num outro ponto em que a cultura portuguesa cristalizou que é a consideração de que um curso obtido numa universidade tem mais mérito do que num politécnico, ainda que este possa ser de grande nível e aquele de menos qualidade.
Como já se concluiu, as vias profissionalizantes estão reféns de planos curriculares que à força de quererem ser equivalentes aos da via de ensino, nem asseguram uma qualificação profissional tão elevada quanto deviam, nem conferem, na esmagadora maioria dos casos, uma preparação satisfatória para um concurso em igualdade de circunstâncias com os outros.
Agora, que mais uma vez se fala em introduzir mecanismos corretivos no acesso, logo se levantam vozes afirmando que se quer promover o facilitismo, vocábulo que envenena qualquer discussão séria e intelectualmente honesta sobre o assunto, o que é meio caminho andado para nada se alterar. Sobre este assunto justificava-se um amplo debate nacional e não apenas académico pois a matéria interessa a todos, famílias e empresas.
Uma outra questão recorrente, também aflorada no texto citado, é a da qualidade dos estudantes ou falta dela, particularmente dos que acedem ao superior através do concurso local dos M23 “especialmente em institutos politécnicos e em universidades privadas.”
Dizendo por outras palavras, todos os mais desfavorecidos são suspeitos de pouca qualidade para acederem ao superior, e se entrarem em concursos locais, mais suspeitos de falta de qualidade se tornam.
O problema da qualidade no ensino superior estatal e privado está ultrapassado; a Agência de Avaliação e Acreditação do Ensino Superior (A3ES) garante hoje a qualidade dos cursos, das instituições e, muito em breve, dos sistemas internos de garantia da qualidade. O primeiro ciclo de avaliação foi concluído, o que significa que nenhum curso está a funcionar sem estar competentemente acreditado. As instituições são objeto de inúmeras auditorias de qualidade por parte da A3ES, Inspeção Geral da Educação e Ciência (IGEC), algumas pela APCER e outras por organizações estrangeiras.
É sabido que alguns responsáveis têm um preconceito indisfarçável contra o ensino privado, como outros têm contra a saúde privada, como se apenas o Estado pudesse assegurar qualidade, chegando-se até a discriminar os estudantes das escolas privadas, obrigados a pagar por estágios em serviços do Estado, quando os das escolas estatais estão isentos, como se fossem filhos de um Deus menor, quando as suas famílias pagam os mesmos impostas que as outras e propinas bem mais elevadas.
Finalmente, a emigração de diplomados qualificados é um não assunto. Primeiro, estimulam-se os programas de mobilidade dos estudantes, considerados fundamentais para lhes abrir horizontes de todo o tipo, o Erasmus transformou-se num dos mais potentes movimentos de identidade europeia, depois, recrimina-se o país porque os deixa sair. Sejamos realistas, ou queremos um país de ignorantes ou formamos gente que em tempos de globalização procura emprego onde lhe pagam melhor e lhe propiciam condições de carreira mais atraentes.
Defender que os nossos diplomados não devem ir para o exterior é igual a não aceitar a vinda de estrangeiros qualificados, que hoje já são milhares. O mercado de trabalho tem cada vez mais dimensão internacional e é impossível conter movimentos de trabalhadores que procuram, de acordo com as suas qualificações, mercados mais atraentes.
O ensino superior, no seu conjunto, tem de se continuar a modernizar, a internacionalizar, a desenvolver a investigação e a formação profissional altamente qualificada, mas também tem de se abrir a novos públicos, nacionais e internacionais, nomeadamente deixando se ser entendido como uma Torre de Marfim onde o conhecimento cristalizou, apenas acessível a alguns.
O ensino superior tem de se transformar num espaço de formação pessoal acessível a todos os que se sentem capazes de o frequentar, com forte apoio em benefícios sociais capazes de corrigir assimetrias sociais e culturais, até porque é possível constatar que muitos estudantes que chegam ao superior com classificações fracas, concluem os cursos em igualdade com muitos outros, que acederam com melhores classificações, e nalguns casos até ultrapassando-os. Ter força de vontade, objetivos mobilizadores, foco na ação é tão ou mais importante do que classificações que hoje são constantemente postas em causa por estarem desfasadas da realidade, isto é, medirem o que já não tem tanta importância e omitirem o mais relevante para os desafios dos dias de hoje.