O Governo resolveu apresentar um plano de acção para os media ao mesmo que anunciava os seus projetos para a RTP e a Lusa. Começou logo aqui o seu primeiro erro, como um erro é reduzir e, a prazo, acabar com a publicidade na RTP. Misturou o seu papel de acionista com o de actor de políticas públicas, contribuiu para a desinformação e o populismo sobre o papel multifacetado do canal público de televisão e rádio e, em última instância, divulgou medidas para o sector público de media que, em vez de ajudarem, agravam a situação, especialmente no que diz respeito ao papel determinante da informação, num tempo em que as democracias enfrentam enormes desafios e o modelo de negócio dos media colapsou. Tudo isto, contrariamente ao que podem pensar os grupos privados.

Permitam-me que escreva na primeira pessoa para fazer uma declaração de interesses. Sou jornalista, também colaboradora da RTP, na rádio e na televisão. Podem certamente acusar-me de ser parcial nesta análise, ainda que, obviamente não seja essa a minha perspetiva. O que apresento aqui são raciocínios lógicos, que permitem chegar à conclusão de que é um erro acabar com a publicidade na RTP. E com um esforço activo de distanciamento e isenção que nós, jornalistas, que optamos por critérios de objetividade, temos sempre de fazer quando olhamos para a realidade. Claro que seremos sempre marcados pela nossa história e a forma como vemos o mundo. E quem ache que o Estado deve ser mínimo ou máximo dificilmente encontrará uma lógica nesta minha análise.

O problema da mistura que o Governo fez entre o seu papel na definição de políticas públicas e o de acionista percebe-se bem com um exemplo. Imagine-se que o Governo anunciava um conjunto de medidas para a banca e, ao mesmo tempo, o seu projeto para a CGD. Sim, felizmente hoje não é possível porque o poder está na União Europeia. Mas mesmo que fosse possível, ninguém acharia isso normal. E agora imaginem que, entre essas medidas, obrigava o banco público a reduzir as suas receitas, a ser menos competitivo e a conceder crédito a empresas ditas “estratégicas”. Nada que não tenha sido tentado no passado e até concretizado com péssimos resultados.

O Estado acionista deve criar um ambiente, no sector em que está a actuar, que não distorça a concorrência mas também que também sem prejudicar a empresa que é sua, ou seja, de todos os contribuintes, para, pelo menos teoricamente, beneficiar os outros participantes no mercado.

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Lamentavelmente, o fim da publicidade na RTP, há muito reivindicada por alguns grupos privados, alimenta a ilusão de que haverá mais receita para o sector privado. Quem assim pensa imagina certamente que Portugal é um retângulo, fechado sobre si mesmo, e continua contaminado pelas políticas do passado, de condicionamento industrial, quando no Estado Novo protegia quem já estava instalado. Hoje o país é aberto e a era digital removeu ainda mais as fronteiras, como é óbvio. E uma decisão destas tem efeitos nefastos em várias frentes.

Primeiro, é altamente improvável que a publicidade retirada da RTP se dirija para os outros canais. Com maior probabilidade vai directamente para o digital. Além disso, havendo menos espaço de publicidade, os preços aumentam, e se o mercado funcionar a publicidade na RTP até deveria passar a ser mais cara do que nos outros canais, uma vez que estamos perante uma situação de racionamento. Além disso, todos sabem que os telespectadores fogem nos intervalos – não é por acaso que as televisões se fiscalizam umas às outras, por exemplo, nos jornais da noite, entrando em intervalo praticamente ao mesmo tempo, anulando assim a potencial vantagem do concorrente. Com menos publicidade, a RTP tem condições para captar mais audiência e, se a deixarem, cobrar mais pela publicidade. Claro que, mesmo com isso, a receita, com elevada probabilidade, cairá.

A Associação Portuguesa de Anunciantes (APAN) alerta aliás para o risco não só de vermos esvair esses anúncios para o digital como de assistirmos a uma espiral de preços num mercado já de si saturado. Representando 80% do mercado publicitário em Portugal, o secretário-geral da APAN, Ricardo Torres Assunção, chama ainda a atenção para outro aspecto especialmente interessante: “As marcas têm também um papel fundamental na sociedade, porque são elas que, por vezes, começam a abordar questões ‘tabu’, como, por exemplo, saúde mental, ou a menopausa”. E a RTP, que queremos que tem como principal função o serviço público, deixaria de ter esses conteúdos.

Olhemos agora para o argumento de que a RTP, rádio e televisão, já têm muito dinheiro através da Contribuição para o Audiovisual (CAV) e também muitos recursos humanos. Além disso, argumenta-se, o sector privado também presta serviços público. Quem assim argumenta pode não estar a ter a fotografia completa do que faz a televisão e a radiodifusão portuguesa.

Vamos aos canais. Na televisão, além dos três em geral mais referidos, existem mais cinco canais:  a RTP Açores e Madeira, a RTP Internacional e a África e a RTP Memória. Além disso, no mundo digital tem  a RTP Play com conteúdos gratuitos e onde se juntam a RTP Arquivos,  a RTP Ensina, a RTP Palco muito importante no tempo da pandemia, a RTP Desporto e a RTP Europa. No caso da rádio, temos sete canais, as Antenas 1 a 3, a África e Internacional e a Madeira e Açores.

Entremos agora no argumento de que também o sector privado presta serviço público e, por isso, afirmam alguns, também devia receber uma contribuição. Sendo certo que também prestam serviço público, no sentido em que a informação jornalística é isso mesmo, também é verdade que, nesse menu, podem escolher o mais rentável. Por exemplo, quem faz a cobertura de eventos desportivos, nalguns casos de nicho? E quem fez a cobertura dos jogos olímpicos? E quem dá espaço para direitos de antena?

Por último, sem que seja menos relevante, o grupo RTP é uma importante ferramenta de política cultural e podia até sê-lo mais, soubesse o seu acionista aproveitar essa potencialidade. A RTP Palco é um exemplo de como soube reagir e apoiar as actividades culturais em tempo de pandemia, mas temos os apoios ao cinema, aos documentários e à música portuguesas – que tem no Festival da Canção um dos seus exemplos.

Tinha uma empresa privada atração por todas estas funções, boa parte delas sem rentabilidade? Obviamente que não. E devia o país desistir dessas funções? Claro que não. Daí que faça todo o sentido ter um grupo público de media. Daí que faça todo o sentido todos contribuirmos, enquanto comunidade, para os multifacetados serviços públicos que a RTP presta através da Contribuição para o Audiovisual (CAV) e para o jornalismo. Mas é igualmente racional que se alivie os bolsos dos contribuintes, através da publicidade, ou corremos o risco de termos o grupo público ainda mais depauperado, especialmente em tempos de apertos orçamentais no Estado. Dizer que há outros canais públicos na Europa que também não têm publicidade não é um argumento. Cada caso é um caso e não devemos imitar os outros só porque são estrangeiros.

Fazendo tudo isto, que muitas vezes é esquecido nas análises mais precipitadas sobre recursos, a RTP sofreu, como todas as empresas do Estado, com o aperto orçamental do Estado e as cativações, que levaram a défice de investimento, à falta de aumentos do capital que lhe era devido e à ausência de autonomia da gestão.

Quer isto dizer que a RTP é perfeita? Claro que não. A gestão precisa de mais autonomia, o Governo tem de cumprir os seus compromissos financeiros, provavelmente o grupo precisa de ser racionalizado e, no domínio da informação, é necessário investir mais em todo o país, com mais delegações e com o reforço das que existem, como já aconteceu no passado, um pilar fundamental da coesão territorial.

O modelo de governação, concretizado por Miguel Poiares Maduro, no governo de Pedro Passos Coelho, com a criação do Conselho Geral Independente contribuiu de forma muito importante para os objetivos que o então ministro definiu: “Diminuir o risco de governamentalização da RTP”. Agora, era preciso dar um novo salto em frente e isso não se faz, seguramente, com o que o Governo pretende fazer em matéria de redução da publicidade.

O sector dos media vive, em termos globais, um problema grave, depois de o seu modelo de negócio ter colapsado com a internet e especialmente com a Google e a Meta.  Contrariamente ao que parece pensar o Governo, todos os grupos, não apenas em Portugal, têm procurado alternativas de rentabilização, sem ameaçar a independência do jornalismo, em equilíbrios difíceis e desafiantes para todos, especialmente para os jornalistas.

Ninguém ganha quando o primeiro-ministro, por ignorância ou leviandade, faz as criticas aos jornalistas baseado em auriculares e olhares para o telemóvel.  Podem sempre dizer que falamos em causa própria, mas hoje é muito mais desafiante fazer jornalismo em redações com equipas mínimas e poucos séniores, com uma concorrência feroz, a exigir actualizações ao minuto e grande espírito de sacrifício de profissionais mal pagos. Sendo a informação um pilar fundamental para o exercício da cidadania em democracia, é claro que o sector precisa de apoios e igualmente claro que é má ideia fragilizar o grupo público que pode desempenhar, nesta batalha contra a desinformação e ao lado do sector privado, um papel importante.

Antes de apresentar o seu plano para os media, o Governo devia ter-se informado melhor em vez de cair na tentação das medidas ilusórias e de afirmações dignas das precipitações e superficialidades das redes sociais. O plano para a RTP, mais grave do que ter sido anunciado no lugar errado, alimentou o desconhecimento sobre a importância para o jornalismo, para a cultura e para a coesão territorial de um grupo público de comunicação social nos tempos conturbados em que vivemos.