Os acontecimentos que se descrevem a seguir são apenas ficção. Não seria possível que isto acontecesse num país desenvolvido da Europa e muito menos naquele que já foi considerado um dos melhores sistemas de saúde públicos do mundo. Sabemos que os Hospitais são os locais em que existe mais sofrimento e onde as pessoas estão mais vulneráveis: despidas daquilo que são lá fora, face a face com a absoluta fragilidade de cada um, subitamente conscientes da sua própria mortalidade. Sendo o sofrimento aquilo que mais nos conecta como seres humanos, a compaixão perante esta circunstância é uma obrigação que nos separa dos animais, afinal o que distingue e valoriza a humanidade. A história que vou contar de seguida relata o que aconteceria se alguns de nós perdesse a capacidade de reconhecer o sofrimento no próximo ou, pior ainda, que isso causasse indiferença.
Era uma vez uma sala de espera das urgências de um Hospital público, onde havia uma senhora que se esforçava por ser diferente, como se estivesse ali por engano: “O meu patrão é o chefe daqui, ele veio ali e olhou para mim”. Pensei que eu deveria estar no lugar errado, aquilo só podia ser a ala psiquiátrica. Depois insistiu no mesmo: “Hoje há greve dos médicos, já estive aqui muitas vezes e isto nunca aconteceu.” Fui ver as notícias e era obviamente mentira mas engoli em seco. “Os coitados ganham pouco e aquela senhora doutora está sozinha para nos atender a todos.”

Foi demais para mim, a médica tinha atendido quatro pessoas em seis horas e ignorado os gritos aflitivos de uma idosa numa maca mal arrumada. Respirei fundo e falei: “Em primeiro lugar, os médicos não estão em greve e depois pergunto quem aqui ganha mais de mil euros por mês e trabalha menos?” O silêncio tomou conta da sala de espera. “Nós pagamos muitos impostos para ter bons serviços e não é isto que está a acontecer aqui.” Pensei que podia dizer que “nós somos os desprezados da sociedade, os dispensáveis, ninguém quer saber de nós” – mas achei que seria demais e toda a gente teria a sua pequena fantasia hedonista que seria impossível de contrariar.

A senhora que se fartava de elogiar os médicos entrou pouco depois no consultório da jovem médica e saiu passada meia-hora por outra porta, onde outro médico mais velho lhe fazia festas na cabeça. Respirei fundo novamente. Era preciso muita saúde para suportar toda a injustiça social e a profunda hipocrisia que desfilavam à frente dos meus olhos.

Levantei-me novamente porque já não aguentava os gritos horríveis da idosa na maca. Tentei falar com ela e acalmá-la. Fui tentar chamar uma enfermeira e uns metros à frente apareceu uma aos berros: eu não devia estar ali, era proibido. Olhei para o lado e havia uma placa a dizer, “wc dos utentes” – mas concentrei-me apenas em tentar dizer o que se passava. A senhora professora doutora enfermeira, munida de sobranceria e altivez, continuou agressiva e por momentos senti que eu era apenas gado no matadouro. Voltei para o meu lugar com lágrimas nos olhos.

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O tempo passou até as lágrimas secarem. Um dos senhores mais idosos que estava numa carreira de rodas, começou a fazer toda a força do mundo para se movimentar. Os seus braços esqueléticos não moviam um centímetro e não havia uma única enfermeira no horizonte. Aliás, durante todo o dia, nem uma única enfermeira entrou ali e perguntou se alguém tinha fome ou sede. Não pude evitar levantar-me e fazer esforço para puxar a cadeira de rodas, afinal a aflição era necessidade imediata para ir à casa de banho. Entrei na “zona proibida do wc” e pedi a uma enfermeira para levar o senhor à casa de banho. Ela apontou e proclamou: “É aí mesmo em frente.” Olhei para todos os lados e esclareci que não sabia o que fazer. A enfermeira acedeu contrariada.

Passadas mais de oito horas de ter entrado na urgência do Hospital, fui chamado. A médica, que aparentava ter metade da minha idade, tinha expressões faciais e gestuais de quem estava a fazer um grande esforço intelectual por me atender. Só com insistência é que me explicou um pouco da minha condição e a razão de aumentar o medicamento para o coração. Finalizou dizendo que se eu desmaiar ou tiver um ataque cardíaco no futuro, devo ir novamente às urgências – primeiro fiquei a pensar que ela estaria a ser sarcástica, mas depois reparei que era mesmo a sério. Perguntei se nesse caso teria de voltar ali através de consulta externa, no entanto ela levantou-se e abriu-me a porta deselegantemente: não pode ter consultas extra no futuro porque está atrasada nas marcações. Apeteceu-me argumentar com ela sobre a forma como me se deve tratar os pacientes, mas não quis tornar-me um cliché.

Recordo que isto é apenas ficção, aconteceu num país imaginário, um ridículo buraco de terceiro mundo onde milhões sofrem para sustentar um punhado de privilegiados que detêm o poder. Neste lugar fantasioso, os privilegiados têm os melhores médicos no segundo seguinte. Tudo o resto são os outros: os que não fogem aos impostos. Os que não têm dinheiro em paraísos fiscais. Os que não conseguiram grandes empregos por cunhas. Os que lutam diariamente por uma côdea de pão. Mas atenção que os outros não são estúpidos (desengane-se quem pensa assim) e não estão desatentos, mas apenas “confortavelmente entorpecidos.” Ainda bem que no mundo real, cá fora, a saúde é universal e gratuita, a educação é independente e vivemos em liberdade, igualdade e fraternidade.