Já me devia ter habituado, mas ainda me espanto com a capacidade de manipulação e prestidigitação da chamada “imprensa de referência” e, por arrastamento, de grande parte da comunicação social.
Na semana anterior, as habilidades mediáticas passavam-se no palco das eleições brasileiras, terminando com a vitória apoteótica do favorito dos ilusionistas da informação. Ali, a proeza era demonstrar que o impoluto Lula da Silva, o “metalúrgico idealista, moderado, pragmático e generoso” vencia – tinha de vencer – o quase-fascista Bolsonaro, para que os bons prevalecessem sobre os maus. Houve até um observador português que chegou a ver do camarote de um Observatório devidamente credenciado e financiado, a derrota, não do “quase-fascista Bolsonaro”, mas do “fascista Bolsonaro”. E quem diz fascista, diz nazi.
Ficou por dizer que o angélico Lula ganhou exclusivamente à custa do Nordeste, uma região encantadora na paisagem, na literatura e na música, terra de coronéis, jagunços e caipiras nas sagas de Jorge Amado e de José Lins do Rego, mas que só representa 15% do PIB do Brasil. E que o diabólico Bolsonaro ganhou no resto do imenso território da nação-continente, com os votos de 58 milhões de brasileiros de todas as classes e regiões. E ganhou apesar das omissões, das histórias mal contadas, das distorções grosseiras da verdade, e do empenhado discurso de ódio ao maligno dessa mesma imprensa de referência, dentro e fora do Brasil.
Esta semana, na Terça-Feira, 8 de Novembro, foi outra história de encantar, um circense “era uma vez na América” com todo um outro, mas igualmente criativo, guião. No festival eleitoral de luz e som que a generalidade dos media proporcionou ao povo, os maus eram os Republicanos, com Trump, co-adjuvado pelos juízes do Supremo Tribunal de Justiça, como super-vilão. Os bons eram os Democratas, com o inefável Biden como cabeça de cartaz. Como toda a gente sabe, os Republicanos querem acabar com a Democracia, tanto que passaram a pertencer a uma nova categoria, a de “semi-fascistas”, produto da criatividade sociopolítica do genial Joe Biden: “Quem vota em “semi-fascistas”, põe em perigo a Democracia”, disse Joe, soprando o cano da sua arma fumegante e rumando ao pôr-do-sol.
Este democrático desempenho de Biden e da imprensa de referência – com um “quem quer salvar a Democracia na América só pode votar num partido: o Democrático” como moral da história – é consciente ou inconscientemente adoptado, por militância ou ignorância, pela maioria dos nossos noticiaristas, especialistas e comentadores.
Adiante. Passado o desabafo, e ainda sem dados definitivos, vou tentar centrar-me nos resultados.
O que está em jogo: princípios e pessoas
As eleições do chamado “Mid-Term” são, em geral, desfavoráveis ao partido que está na Casa Branca. Ficou famosa, em 1994, durante o primeiro biénio da presidência de Bill Clinton, a conquista do Congresso pelos Republicanos, capitaneados por Newt Gingrich, um líder conservador, agressivo e determinado. Desta vez, com a baixíssima popularidade de Joe Biden e com a inflação e o preço dos combustíveis como preocupações maiores dos eleitores, esperava-se, moderadamente, uma onda vermelha, dando-se praticamente por certa a tomada da câmara baixa dos Representantes pelos Republicanos e prevendo-se uma possível, ou até provável, conquista do Senado.
Até agora, tal não sucedeu, mas espera-se que os Republicanos venham a ficar em maioria nos Representantes – embora com uma vantagem ligeira. O Senado (quando ainda não saíram os resultados do Nevada e do Arizona) terá provavelmente de esperar pela segunda volta em Dezembro, na Geórgia, onde nem o candidato republicano nem o democrata chegaram aos 50%. E, ali, pode ficar tudo na mesma.
A agenda principal dos Republicanos assenta na crítica do circunstancialismo económico e social do momento, cuja culpa é sempre dos governos. Além desta questão central, os temas são os clássicos do nacionalismo conservador e identitário: a defesa da família e da vida, o combate à endoutrinação radical na educação, a luta contra a imigração ilegal, contra a criminalidade e contra a droga e defesa da liberdade de porte de arma. Nem todas estes assuntos têm a mesma importância e prioridade, dependendo dos Estados e da sua tradição e cultura.
A par destas questões substanciais, umas de doutrina e princípio e outras de política e estratégia, subsistem aspectos mais episódicos e pessoais, mas também determinantes.
Aqui avulta, entre todos, a personalidade e o protagonismo do ex-Presidente Trump, e a sua insistência no assunto (muito discutível e discutido) da validade das eleições de 2020. A fraude e a consequente ilegitimidade de Biden é um artigo de fé para Trump e para uma série de republicanos agora eleitos. Mas não para outros. Não para todos. Os Democratas procuraram reduzir os seus adversários à controversa figura de Trump, às suas teses “conspiratórias” e ao ataque ao Congresso de 6 de Janeiro de 2021.
Mas, a crer nalguns comentadores da imprensa conservadora, como Rod Dreher em The American Conservative ou Ann Coulter, na Taki’s Magazine, Trump é o principal responsável pelo facto de a vitória republicana não ter tido a dimensão esperada.
Porque, quando 72% dos inquiridos acham que o país vai na direcção errada, quando o Presidente tem de ser quase “cancelado” pelos seus próprios colaboradores para não se enredar em gaffes e confusões, quando o Partido Republicano cresceu em termos de conquista de votos “hispânicos” e até de votos afroamericanos, não se compreende a não-eclosão de uma vaga vermelha.
Trump: a persistência de uma herança ambígua
Segundo o Washington Post, “um terço dos eleitores americanos acredita que a eleição de Biden em 2020 foi ilegítima”. Independentemente do valor deste género de sondagens, a questão acaba por ser marginal – e divide os Republicanos, embora os negacionistas sejam maioritários no partido.
Para outros conservadores, como o historiador Victor Davis Hanson, Trump, que em 2016 conseguiu captar o descontentamento da América dos “perdedores” do globalismo, dos Estados da “ferrugem”, dos descendentes das famílias operárias de Detroit e Pittsburgh, dos trabalhadores do automóvel e do aço, cujas fábricas e empregos voaram há 30 anos para o México e para a China, pode agora estar a transformar-se num elemento de divisão dos Republicanos; alguém que divide os amigos e une os inimigos.
A avaliação objectiva deste papel de Trump, baseada na performance dos seus seguidores e protegidos na eleição, não é fácil de estabelecer, na medida em que alguns desses seus seguidores, como J.D. Vance, eleito senador pelo Ohio, têm substância e tiveram sucesso; enquanto outros, como Doug Mastriano, derrotado na eleição para governador da Pensilvânia, tiveram uma campanha radical, com ditos e resultados desastrosos.
O protagonismo de Trump funcionou como um elemento perturbador num cenário em que, no seu essencial, era favorável aos Republicanos. Ao centrar na sua figura a causa da oposição, o ex-Presidente – que teve os seus méritos no passado e está longe de ser o lunático criminoso que pintam os seus inimigos – facilitou a propaganda dos Democratas. A memória do “assalto ao Capitólio”, em Janeiro de 2021, persistiu como um ícone negativo para Trump e para os seus seguidores e, nas vésperas das eleições, os Democratas mobilizaram esforços e figuras – de Obama a Biden – para dramatizar a situação, descrevendo uma eventual vitória Republicana como a vitória da opressão e da desordem. E veio a história de que o paranóico que invadiu a casa dos Pelosi e agrediu o marido da líder democrata era um elemento do MAGA, possuído pelo discurso de ódio; e o apelo de Biden ao voto contra os Republicanos, caricaturando a legislação sobre o aborto, que se limita a passar para as instâncias estaduais a decisão, como uma sentença de morte passada às jovens americanas grávidas, atiradas para os perigos do aborto clandestino.
Apesar de toda esta propaganda e demagogia, apesar de algum caos nas contagens, da confusão dos votos pelo correio, que alimentam as suspeitas populares sobre fraudes e recontagens, os Republicanos vão muito provavelmente ganhar a Câmara dos Representantes e manter o empate formal no Senado (sempre desempatado pela Vice-Presidente Kamala Harris).
Claramente, a táctica da Esquerda, uma esquerda muito híbrida, que vai do errático grande capital financeiro aos radicais Woke, é transformar em vitória uma derrota – que temiam, e com razão, que fosse muito maior. E explorar as divisões no campo republicano, sobretudo a rivalidade entre Trump e o governador De Santis, encorajando-os a atacarem-se mutuamente.
De Santis foi reeleito governador da Florida. Há quatro anos tinha ganho o cargo por uma margem mínima de 32.463 votos. Desta vez, contra o mesmo adversário, ganhou por mais de 1.500 000 votos, cerca de 60% contra os 40% do seu opositor, com proezas eleitorais inéditas, como ganhar em Miami- Dade County, que há mais de 20 anos não elegia um republicano.
Em 1998, nas Midterm Elections do segundo mandato de Bill Clinton, também se esperava uma vaga vermelha que não veio, e Newt Gingrich e a sua liderança foram atingidos por esse insucesso. Dessas eleições emergiu George W. Bush, então governador do Texas, que em 2000 ganharia por uma pequeníssima diferença a Casa Branca para os Republicanos.
Comparado com o puro e duro Gingrich, Bush, com o seu conservadorismo de rosto humano e o seu cristianismo born-again, aparecia como um republicano com grande sucesso junto do eleitorado “latino”. Gingrich abandonou a liderança do Congresso uma semana depois.
Alguns analistas americanos, como Matthew Continenti, do America Entreprise Institute, autor de The Right: The Hundred Years War of American Conservatism, convergem na ideia de que foram o “abrasive style” e a “divisive leadership” de Trump, que causaram este relativo insucesso e que poderão causar outros, na medida em que o Presidente se terá tornado um elemento perturbador da reconquista pelos Republicanos do poder na América.
Além dos efeitos da guerra da Ucrânia na economia americana (note-se que a política externa ficou de fora da campanha, como se não existisse ou fosse comum), a conjuntura actual é marcada pela influência que os elementos da esquerda radical ganharam no Partido Democrático, um partido tradicionalmente entre o centro e centro-esquerda. Essa influência em matéria de princípios, de família e de religião, desencadeou – como sempre sucede – uma radicalização paralela entre os Republicanos.
A surpreendente vitória de Trump em 2016 não teve tanto a ver com esta contradição. Foi mais um reflexo popular ou populista das classes trabalhadoras e das classes médias brancas americanas, perante uma representante da elite liberal-chique, desligada dos seus problemas e da sua sorte, que lhes chamou “deploráveis”.
Trump, com o seu modo truculento e agressivo, encarnou então o protesto, a alternativa a Hillary Clinton que, por sua vez, simbolizava essa elite deslumbrada e arrogante de que os “deplorables” se queixavam. Havia uma América profunda, patriota, conservadora, identitária, que se sentia ameaçada e humilhada pela elite liberal, uma América que J.D. Vance, agora eleito senador pelo Ohio, lembra em Hillbilly Elegy.
Desta vez, a situação e as contraposições são outras: as concessões e contradições de Biden, um católico oficial que se empenha na campanha pró-abortista, tropeça nas palavras e promove o wokismo, criavam um inimigo ideal para unir os amigos e aliados objectivos. Só que Donald Trump, com as suas intervenções e a sua Agenda de reivindicações pessoais – como o tema da Eleição de 2020 e os seus escolhidos e rejeitados – criou, internamente, um forte sentimento de rejeição que afectou potenciais eleitores conservadores.
Líderes republicanos como Ron De Santis, com a sua vitória em toda a linha, parecem ser a alternativa. Trump foi importante na criação de um outro Partido Republicano, socialmente mais alargado e racialmente mais integrado. Porém, as suas escolhas e o seu patrocínio de maus candidatos parece estar na base das derrotas e insucessos do Partido Republicano em Estados como a Pensilvânia, o Arizona e a Geórgia, onde, à partida, os Republicanos podiam ter vencido.
De Santis é um nacional-conservador afirmativo, coerente e combatente, com ideias e com coragem. A escolha de um candidato republicano à Presidência deveria, racionalmente, cair nele ou em alguém como ele. Mas, realisticamente, Trump tem influência e poder mais que suficientes para neutralizar qualquer concorrente alternativo ou para lhe fazer a vida negra. E, se rejeitado pelo Partido, pode bem patrocinar uma candidatura independente.
O dilema da direita americana não vai ser fácil de resolver.