Na última década, mas sobretudo no período pós-pandemia, temos testemunhado um rápido avanço da tecnologia digital, com dispositivos eletrónicos cada vez mais presentes nas nossas vidas e sobretudo em idades cada vez mais precoces. Na pandemia, todas as crianças foram “obrigadas” a usar os meios digitais para continuarem a manter contacto com os seus professores e colegas. O ensino a distância foi um “desenrasque”, numa situação muito específica, numa situação de emergência mundial, executado sem grandes reflexões sobre os seus efeitos. Aceita-se, devido ao momento. Mas, com esta situação, é urgente que surja um debate alargado acerca dos riscos e benefícios da exposição das crianças ao mundo digital. Não podemos continuar a ser coniventes com a tendência do Governo para, por questões meramente economicistas, querer tornar a escola numa grande fábrica de acéfalos digitais. Aquela que deve ser a preocupação dos professores é a de não ceder a essa tentação.

Há perigos reais na exposição digital. Essa excessiva exposição ao digital pode levar a uma dependência e mesmo ao vício em dispositivos eletrónicos. O uso indiscriminado de smartphones, tablets e computadores pode prejudicar o desenvolvimento saudável das crianças, interferindo no seu sono, socialização, atividades físicas e até mesmo na capacidade de concentração.

Num estudo da Universidade de Calgary (2019) descobriram que o uso excessivo de ecrã nas crianças pequenas estava associado a um menor desenvolvimento da linguagem expressiva. Outro da Universidade de Toronto (2018) sugeriu que o uso excessivo de dispositivos eletrónicos em crianças em idade pré-escolar estava associado a atrasos no desenvolvimento da fala e da linguagem.

Outro ainda, no mesmo diapasão, da Universidade de San Diego (2019), afirma que as crianças entre 3 e 5 anos, que passavam mais tempo em contacto com o digital tinham um desenvolvimento menos satisfatório em habilidades cognitivas e linguísticas em comparação com aquelas que tinham menos exposição.

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Na mesma linha de investigação, um outro, da Universidade de Ottawa (2017), concluía que as crianças de 2 a 5 anos que usavam dispositivos eletrónicos por mais tempo apresentavam atrasos na linguagem recetiva (compreender o meio e o outro através do que ouve ou do que lê).

Todos eles sugerem que o uso excessivo de dispositivos digitais em idades precoces pode interferir no desenvolvimento cerebral normal, especialmente nas áreas relacionadas à atenção, memória e controlo impulsivo.

Na aprendizagem e linguagem, também é sabido que pode ter um impacto negativo no seu desenvolvimento, assim como nas habilidades de comunicação das crianças. Dizem os estudos que a interação cara a cara com os adultos e a exposição a uma variedade de estímulos do ambiente real são fundamentais para o desenvolvimento adequado da linguagem.

A concentração da atenção também pode ser prejudicada, pois os estímulos digitais intensos e imediatos acabam por prejudicar a capacidade de as crianças se envolverem em atividades que exijam uma maior atenção sustentada.

Um ecrã que emite uma luz própria com diversas cores e intensidade pode interferir na qualidade e na quantidade de sono das crianças. E como é do conhecimento comum, a privação do sono está associada a uma série de problemas de saúde física e mental, incluindo dificuldades de aprendizagem e falta de concentração.

Para além destes perigos, há ainda aquele que, quanto a mim, é o mais preocupante. A degradação das habilidades sociais e emocionais. O uso excessivo de dispositivos digitais pode limitar as interações sociais face a face, essenciais para o desenvolvimento das habilidades sociais e emocionais das crianças. Basta entrarmos num qualquer recreio de uma qualquer escola pública de Portugal para vermos uma quantidade assustadora de jovens sentados por qualquer canto, agarrados ao telemóvel. Não interagem, não correm, não conversam, apenas “bebem” aquilo que todas as redes sociais e seus influencers lá colocam, sem a mínima capacidade crítica, em busca da graçola fácil, do desafio imediato… não gosta, arrasta o dedo e passa ao próximo.

Sem dúvidas que a capacidade de interpretar emoções, criar empatia e interagir adequadamente com os outros pode ser comprometida quando as crianças adotam estes comportamentos de exposição excessiva ao digital, que as isolam dos demais.

Mas afinal quais são os argumentos daqueles que defendem a introdução precoce da tecnologia digital?

Dizem que, como vivemos numa era digital, em que o conhecimento e o domínio das tecnologias são essenciais, devemos introduzir os meios digitais precocemente para permitir que as crianças adquiram habilidades necessárias para o seu futuro profissional e participação na sociedade. Ainda há dias o Ministro da Educação, João Costa, disse que “Se deixarmos o digital de fora, só os ricos terão acesso ao digital no futuro” . Terá ignorado todos os perigos identificados em estudos internacionais?

Outro dos argumentos muito utilizado pelos acérrimos defensores do digital é o de que a tecnologia oferece recursos educativos interativos e personalizados adaptados às necessidades individuais das crianças. Não sendo mentira, se o fizermos em excesso esbarramos na evidência de que prejudica mais do que beneficia. O digital pode ter um uso complementar, mas nunca substitutivo como pretende a tutela, com a intenção da adoção de livros digitais em todos os ciclos.

Um uso equilibrado em sala de aula entre os dois métodos de ensino, em meio controlado pelos professores, pode ajudar a enriquecer o processo, pois a internet disponibiliza um vasto acervo de informações e recursos educativos que não se pode ignorar, mas que não substitui o uso de manuais, cadernos e livros.

Se os decisores políticos estivessem realmente interessados no desenvolvimento da educação do país dariam um passo atrás relativamente à introdução desenfreada do digital e dos ecrãs na escola, tal como fez a Suécia (Too fast, too soon? Sweden backs away from screens in schools) bem recentemente.

Nós, professores, devemos fazer o contraditório deste deslumbramento globalizado pelo digital. Não é ser contra o progresso. É ser contra o retrocesso, como se pode constatar ao ler um dos estudos mais incisivos sobre esse retrocesso intelectual, realizado por investigadores da Noruega, que analisaram 730 000 testes de Q.I. aplicados em jovens convocados para o serviço militar obrigatório nos últimos quarenta anos. As conclusões são reveladoras: os aumentos anuais do Q.I. dos noruegueses passaram de 2 pontos nos anos 80, para 1,3 ponto nos anos 90 e tiveram um recuo de 0,2 ponto neste século.

Processo semelhante foi detetado no Reino Unido e na Dinamarca. Pesquisas como essas reforçam o alerta dos especialistas para as mudanças no estilo de vida que, segundo eles, estão por trás deste retrocesso — aí incluída, em lugar de destaque, a imersão constante e indiscriminada nos eletrónicos. A informação está disponível. É aceder a ela, ler, apreender e decidir em concordância com aquilo que melhor pode ajudar a escola cumprir o seu propósito: ensinar através da transmissão de conhecimento. É isso que fazem os colégios de topo em Portugal e as escolas de países como a Suécia.

P.S. Nem de propósito, no passado dia 26 de julho, a TSF noticiou que o TheGuardian fazia eco do mais recente relatório da UNESCO, Global educationmonitoringreport, 2023: technologyineducation: a toolonwhoseterms? que pede que telemóveis sejam banidos nas escolas.