A 7 de Novembro de 2023, aparentemente, o consulado de António Costa desaba, sem sólido fundamento judicial, ao fim de oito anos de um poder quase absoluto. A 18 seguinte, cumpre-se outro aniversário do 2.º Visconde de Santarém (1791-1856), historiador e estadista português, pai da cartografia científica mundial, cujo bicentenário, em 1991, o Público e o Expresso assinalavam. O que têm em comum os dois factos? Muito mais do que se pode pensar. O Portugal do 25 de Abril teima em manter os tiques culturais de esquerda e em remeter para o limbo figuras maiores de cultura e pensamento. Em benefício de carapaus de corrida que a espuma dos dias traz à costa…

O complexo industrial-pensante português, constituído por jornalistas e comentadores, membros de academias (académicos), professores universitários e políticos, não se notabiliza – com brilhantes, mas raras excepções – pela inovação ou por pensar fora da caixa. Pelo menos, não no que diz respeito à análise historiográfica da primeira metade do século XIX nacional; especificamente, do tempo de D. João regente e D. João VI (1792-1816) a D. Miguel I (1828-1834).

Todos, de uma forma geral, mesmo quando não especializados, têm uma pernita de historiador para dar. Todos são historiadores de bancada, claro. Estás-lhes (Está-nos, a nós, povo português), na massa do sangue. Basta ver o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, todo o santo 10 de Junho, a criar mitos sobre a história e o destino sebástico de Portugal no mundo.

Em definitivo, este país não é para tradicionalistas, nem para miguelistas, nem para aristocratas. Apenas para socialistas, republicanos e plebeus. Por mim, pessoalmente, é-me igual. Não me identifico com nenhum dos lados da barricada. Mas, a nível científico, cultural e patrimonial, essa situação é grave, muito grave. Estamos perante uma evidente sovietização da memória nacional, quase cem anos depois dos sinistros métodos empregados pelo regime de Josef Estaline.

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O tradicionalismo pode ser definido, in lato sensu, enquanto corrente de pensamento na qual se mesclam o conservadorismo, o atavismo e uma crença arreigada nos valores da ancestralidade e do passado[i].

Prosseguindo, confesso que me provoca alguma espécie que, por exemplo, um português da estirpe do 2.º Visconde de Santarém, nascido em Lisboa a 18 de Novembro de 1791, seja persistentemente esquecido por Portugal, a começar pelos seus próprios descendentes. Quando tal acontece; quando o bisneto do historiador, estadista, escritor e académico, o actual representante da Casa Senhorial (o 4.º titular, nascido em 1929), ou os seus filhos, nada faz(em) de concreto para divulgar o papel do antepassado na Europa do seu tempo, porque foi ministro dos Estrangeiros de D. Miguel, isso significa – a meu ver – que há algo de podre no espírito português.

Tão estranha me parece é essa indiferença ou animosidade, que não resisto a narrar uma anedota pessoal, sucedida em 1995, na Universidade de Coimbra. Na verdura dos meus 22 anos de 1.º ano de mestrado, ouvi, estupefacto, mas silencioso, o seguinte labéu da boca do director da Biblioteca Geral, quando fui chamado ao respectivo gabinete, para justificar a requisição de uma obra do insigne historiador: “O quê, o Visconde de Santarém, esse fascista?”. Quase trinta anos passados, acredito que pouco ou nada mudou, relativamente a essa visão, pois o país continua dividido, quanto ao valor desse seu filho dilecto. O que não deixa – sempre na minha subjectiva interpretação – de constituir um escândalo, cultural, científico e patrimonial.

Vejamos porquê.

Há mais de cinquenta anos que o insuspeito historiador Jorge Borges de Macedo (1921-1996) afirmava peremptoriamente que, em 1842, “A figura dominante da investigação histórica nacional continuava a ser o absolutista Visconde de Santarém”. Quanto a António Henrique de Oliveira Marques (1933-12007), outra figura maior da historiografia portuguesa do século XX, designou-o, pouco depois, como “predecessor de Herculano na publicação sistemática de documentos históricos”[ii].

Que o Visconde de Santarém é um dos historiadores portugueses de maior renome internacional na primeira metade do século XIX, prova-o o facto de ter sido membro do Instituto de França e de mais de quarenta sociedades académicas europeias. É elogiado por Heinrich Schaefer (celebrado lusitanista alemão) e por Alexander von Humboldt, neste caso, por causa da polémica da prioridade nacional no contexto dos descobrimentos europeus. De resto, em 2019 o Centro de História da Universidade de Lisboa publicou o volume Historiografia, Cultura e Política na Época do Visconde de Santarém, que coordenei, com contributos relevantes, sobre o assunto, por parte de historiadores de várias nacionalidades.

Antes e depois da convenção de Évora-Monte (que assinala o fim da guerra civil de 1832-34), o Visconde é agraciado, com ordens honoríficas de Portugal, Espanha e Brasil, inclusive, a grã-cruz da Ordem de Cristo por D. Maria II e o oficialato da Ordem do Cruzeiro por D. Pedro II, sobrinhos do derrotado D. Miguel. É ministro do Reino em 1827, dos Estrangeiros em 1828-34, guarda-mor da Torre do Tombo duas vezes, cronista do reino a partir de 1842 (o que não deixa de causar celeuma). O seu Quadro Elementar das relações políticas e diplomáticas de Portugal (de 11 volumes), o Atlas, as obras Memória sobre a prioridade dos descobrimentos portugueses na costa d’ África ocidental… e Éssai sur l’hstoire de la cosmographie et de la cartographie (de três tomos), são títulos custeados pelo Estado liberal português. O mérito científico e patriotismo do autor são reconhecidos dentro e fora do reino. O que não o impede de, quando falece em Paris, a 17 de Janeiro de 1856, pobre, ser rapidamente esquecido. Pois não deixa discípulos nem seguidores que disso se reclamem. O que não invalida que tenha sido o pioneiro da história diplomática em Portugal e o primeiro, a nível mundial, a estudar a cartografia de modo científico e sistemático, enquanto ferramenta de conhecimento histórico diacrónico. Pode mesmo afirmar-se, sem exageros provincianos, que o Visconde de Santarém foi o mais importante dos estrangeirados portugueses do século XIX, dado o impacto considerável que manteve na Cidade-Luz, de 1834 a 1856. Mais do que Alexandre Herculano ou Eça de Queiroz ([iii]).

Voltemos, entretanto, à realidade política actual.

Há quem atribua a Júlio César a estafada frase de que os lusitanos não se governavam, nem se deixavam governar. Mais do que a autoria (ou a autenticidade) da citação, ou da genealogia lusitanos-portugueses, o que importa é a autocomplacência com que nós, habitantes de Portugal, percepcionamos a ideia de que somos ingovernáveis, por alguma razão genética ou divina. Uma espécie de marca bíblica, antisebástica, nascida quer do contacto com as especiarias do oriente, quer com o ouro e diamantes do Brasil, ou com os fundos estruturais da União Europeia. Selada com o desfecho da batalha de Alcácer Quibir e com um D. Sebastião desaparecido e que teimamos em ver reencarnado em José Sócrates, Pedro Passos Coelho ou, claro, António Costa, salvadores da pátria…

Para esse conjunto de percepções, existe uma resposta única.

Conforme escreveu, há quase duzentos anos (em 1827), o Visconde de Santarém, necessitamos de remediar as nossas confusões históricas[iv].

E podemos – devemos – fazê-lo do seguinte modo.

A história das ideias políticas, em Portugal, sofre de um estranho caso de geração espontânea. Sobretudo, a história das ideias políticas conservadoras, ou de direita.

Segundo os manuais da especialidade, nasce algures no final do século XIX, com a emergência do pensamento católico de cariz social, influenciado pela prática política do chanceler Bismarck.

Ora, num país (Portugal) cuja nacionalidade recua ao século XII; de fronteiras estáveis desde o século XIII e cujo catolicismo reformista se afirma na centúria de Quinhentos, com a criação da Misericórdia de Lisboa e a introdução da Companhia de Jesus e do Santo Ofício, isso não pode deixar de significar um estranho vazio na continuidade temporal dos ideais cristãos e conservadores.

Daí a necessidade, neste momento, de ser elaborada uma história do tradicionalismo e das direitas em Portugal, entre 1792 e 1851, um projecto que espero concretizar a médio prazo.

Se pensarmos, adicionalmente, que o tradicionalismo contrarrevolucionário emerge no ano de 1822, triunfando com a Vilafrancada de 1823 e com o miguelismo corporizado à volta do infante, regente e rei D. Miguel (cuja existência biológica se prolonga até 1866), como explicar essa aparente descontinuidade nos ideais políticos conservadores, aos olhos da historiografia consagrada?

Na minha opinião, isso deve-se ao medo, ao temor, ao terror que a sociedade e a comunidade científica portuguesa sentem, para com a figura de D. Miguel e para com o conceito de miguelismo. Já a 30 de Maio passado tive ocasião de escrever sobre isso.

Tal sucede porque, politicamente, ainda no Estado Novo, com Salazar (sobretudo na década de 1950), é alimentada a ilusão de uma monarquia restaurada, na pessoa de D. Duarte Nuno (1907-1976), descendente do ramo miguelista da família real portuguesa (e pai do actual Duque de Bragança).

De tal modo, que ainda hoje se analisa tudo o que tenha a ver com o miguelismo com pinças e com pejo; e de modo telegráfico, demasiado telegráfico. O que é lamentável e sintomático de uma determinada mentalidade de cerco. Como se a guerra civil de 1832-34 ainda não tivesse terminado. Na verdade, terminou. Mas nunca deixou de produzir efeitos na sociedade nacional.

No breve, mas documentado reinado de D. Miguel (1828-1834), o Visconde de Santarém desempenha um papel de relevo, ao lado do 6º Duque de Cadaval, ministro assistente ao despacho até 1831. Representam o sector moderado do regime, assim como o bispo de Viseu, em oposição ao famigerado conde de Basto (ministro do Reino) e a Frei Fortunato de São Boaventura, arcebispo de Évora (reitor-reformador geral dos estudos).

Ora, quando tudo aquilo que a aristocracia contém de mais significativo, isto é, o capital de honra, de nobreza das letras e das ciências, dos ideais políticos de tolerância e de moderação (por mais estranhos que nos possam parecer a nós, cidadãos da aldeia global do século XXI), como os nutridos pelo Visconde de Santarém, é renegado e espezinhado pela carne da sua carne, sangue do seu sangue, pela Família (com maiúscula, como Pátria e Deus), atingimos o paroxismo da descrença e da decadência. Não o paroxismo do que as historiografias romântica, socialista e republicana pregam desde Alexandre Herculano, Antero de Quental e Oliveira Martins, quanto à suposta degenerescência nacional e à comprovada laicização e descristianização da sociedade portuguesa. Mas da descrença total nos valores do culto dos antepassados e da piedade filial, que já na Roma Clássica e no Japão imperial eram pilares fundamentais do conservadorismo.

Não por acaso, desde 1910 que nos três regimes republicanos, a nobreza – parte dela, pelo menos – procura honrar os feitos dos seus avós preservando documentação arquivística; divulgando, em edições críticas, as fontes narrativas, memorialísticas e historiográficas dos titulares aristocráticos. Foi o caso, por exemplo, do 3.º Visconde de Santarém (1878-1971), nas décadas de 1900 a 1920. Porém, com o 25 de Abril de 1974, os tempos têm sido outros. Cada vez menos figuras tutelares como o 2.º Visconde de Santarém parecem interessar a uma sociedade cujos exemplos morais são, já não os de um Francisco Sá Carneiro, mas os de um José Sócrates ou de António Costa.

Tal qual um estoico (como Séneca ou Marco Aurélio), o Visconde escrevia, a 18 de Abril de 1842, palavras de moderação perante as desgraças das guerras e das revoluções políticas, em carta particular dirigida – imagine-se! – a Rodrigo da Fonseca Magalhães, cognominado a Raposa. Trata-se – convém recordar – do político português que no século XIX melhor exemplifica a capacidade de resistir a todas as tempestades políticas, a todos os escândalos, antecipando, de certo modo, um Chico Rolha (marechal Costa Gomes) ou um Almirante Vermelho, António Rosa Coutinho, no Verão Quente de 1975 ([v]):

Que teria sido de mim sem o estudo, sem os livros, sem a filosofia que eles inspiram na adversidade! Ao estudo devo consolações e confortos que, sem este, não encontraria em circunstância alguma e que nenhum poder humano me podia dar. […] É aos livros que devo a tolerância dos princípios e as convicções profundas da indispensável necessidade de ordem nas sociedades humanas[vi].

Essa sua serenidade, de resto, é elogiada pelo memorialista liberal marquês de Fronteira, o qual descreve como, em 1834, o Visconde desejou abandonar o reino e exilar-se em França:

Era um verdadeiro filósofo e indiferente a tudo quanto se passava; e desde logo anunciou o seu projecto de ir passar o resto da sua vida a Paris, abandonar completamente a política e dedicar-se, fazendo uso da sua grande instrução e talento, a escrever sobre a nossa gloriosa antiguidade[vii].

Essa, sim, parece-me ser a atitude a manter neste Portugal de 2023, de facções em luta nos partidos em ciclo eleitoral, de lobbies por legislar, de ultradireitas em claro assalto ao poder : estudar, ler, filosofar, perante a loucura do mundo e dos homens. Ser tolerante, moderado, não conforme o bloco central português, mas de acordo com o ideário moderado do 2.º Visconde de Santarém, tradicionalista, patriota e expatriado, que urge relembrar e nunca olvidar. Em nome de uma identidade nacional que muitos teimam em soterrar e renegar.

A nível científico, o apelo deste estadista e historiador é igualmente límpido e vetusto – tem, precisamente, 180 anos (data de 1843):

Uma história verídica, autêntica, digna de fé, imparcial e filosófica só pode ser a que for fundada em documentos autênticos[viii].

Uma lição à qual a actual historiografia portuguesa, infelizmente, não recorre, na sua ânsia de doutrinar as massas. Sem recurso a documentos, não há ciência histórica. Há sofismas, há ideologia. Inverdades. Pão e circo. Futebol, fado e Fátima. Ou como escreve João Miguel Tavares, a propósito do 25 de Novembro de 1975 :

O que interessa neste caso é que [Carlos] Moedas está do lado certo [sic] da História. Lá porque o Estado Novo foi uma ditadura de direita conservadora não temos de assistir mudos e quedos à reescrita da História por parte dos radicais de esquerda. Isto já dura há 50 anos. Chega de faltas de comparência.

[i] “O estudo do passado e dos monumentos que nos precederam é, pois, a ocupação mais digna e mais filosófica do homem de bem. Devemos o terreno em que nascemos a nossos Maiores, que morreram depois de o haverem conquistado. E nós colhemos seus trabalhos e seus sacrifícios. Seria, portanto, a maior ingratidão e indignidade se nos esquecêssemos de conservar intacto e sempre presente este património de Honra e de Glória, que nos legaram as gerações passadas” (Visconde de Santarém, Memórias para a História, e Teoria das Cortes Gerais que em Portugal se celebraram pelos Três Estados do Reino, ordenadas e compostas neste ano de 1824, Parte 1.ª, Lisboa, Impressão Régia, 1827, p. III).
[ii] Jorge Borges de Macedo, “A «História de Portugal nos séculos XVII e XVIII» e o seu Autor”, in Luís Augusto Rebelo da Silva, História de Portugal nos Séculos XVII e XVIII por…, Lisboa, Imprensa Nacional, 1971 (1ª ed. 1860-1871), pp. 16-20 e Idem, “A Tentativa Histórica «Da Origem e Estabelecimento da Inquisição em Portugal» e as Insistências Polémicas”, in Alexandre Herculano, História da Origem e Estabelecimento da Inquisição em Portugal, Lisboa, Livraria Bertrand (Obras Completas de Alexandre Herculano), 1975 (1ª ed. 1854-1859), tomo I, p. XIX. António Henrique de Oliveira Marques (org.), Antologia da Historiografia Portuguesa, vol. I, Mem Martins, Publicações Europa-América, 1974, p. 28.

[iii] Para saber mais, veja-se https://journals.openedition.org/terrabrasilis/11829, Carlos Manuel Baptista Valentim e Daniel Estudante Protásio, “O 2.º Visconde de Santarém, fundador da cartografia científica (1844-2024)”.

[iv] Visconde de Santarém, Memórias para a História, e Teoria das Cortes Gerais que em Portugal se celebraram pelos Três Estados do Reino, ordenadas e compostas neste ano de 1824, Parte 1.ª, Lisboa, Impressão Régia, 1827, p. III.

[v] Rodrigo da Fonseca que, anos depois, acabaria por abandonar o Visconde à sua sorte em Paris, aquando de uma polémica a propósito da publicação de documentos diplomáticos, que Alexandre Herculano, vice-presidente da Academia das Ciências de Lisboa, consegue, em 1852, que sejam incluídos nos Portugaliae Monumenta Historica.
[vi] Visconde de Santarém, Correspondência do… Coligida, coordenada e com anotações de Rocha Martins (da Academia das Ciências de Lisboa). Publicada pelo 3º Visconde de Santarém, Lisboa, Alfredo Lamas, Mota e Cª, Editores, 1919, vol. VI, p. 234.
[vii] Marquês de Fronteira, Memórias do… e d’Alorna, D. José Trazimundo Mascarenhas Barreto, Ditadas por Ele Próprio em 1861…, Lisboa, Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1986 (reimpr. fac-sim. da ed. de Coimbra de 1928)., “Parte V (1833 a 1834)”, p. 92.

[viii] Visconde de Santarém, Quadro Elementar das relações políticas e diplomáticas de Portugal com as diversas potências do mundo, desde o princípio da monarquia portuguesa até aos nossos dias, 2.ª ed., t. III, Paris, J. P. Aillaud/Oficina Tipográfica de Fain & Thunot 1843, p. XVI.