Vivemos uma crescente e global pandemia. Não nos referimos à tão bem conhecida e prolongada, a provocada pelo Covid-19. Esta, apenas acentuou e escancarou outra, pré-existente. Afinal, vivemos “O Século da Solidão”.
Nós comunicamos sobretudo pela linguagem, organismos vivos em perene transformação. Há palavras que, bem sabemos, são peculiares e não encontram equivalentes em outra língua. A palavra Saudade deveria ser declarada património universal, ainda que imaterial, do nosso idioma. Quando tentamos traduzir, aqueles que têm outras como língua materna pensam que estamos apenas a referir-nos a sentimentos tristes que nos fazem sofrer. Nem sempre é assim… Há saudades tanto no fado quanto no samba. Muitas vezes, a saudade vem associada a lembranças ternas, reconfortantes, uma mistura de nostalgia, bem-querer, um fundo de tristeza, de tempos ou pessoas amadas que agora pertencem ao passado, mas que também podem deixar a expectativa do retorno. Só quem comeu um bacalhau à moda do Brás na infância pode entender o que é ‘saudade’ com este significado de não ser apenas algo irrecuperável, que dói e sem possibilidade de retorno.
Nós quase que perdemos a perceção de uma palavra que, embora exista nos dicionários, já é pouco usada em Português. Solitude não é o mesmo que solidão. O clássico de Gabriel Garcia Marques não foi traduzido como One hundred years of loneliness, mas sim Cem anos de solitude. A língua inglesa preserva as duas palavras, mas não como sinónimos.
Na Campanha para combater loneliness, do Reino Unido, a palavra é definida como “um sentimento subjetivo, incómodo, não bem-vindo, que resulta de uma discrepância ou desajuste entre a qualidade e a quantidade de relações sociais que temos e as que gostaríamos de ter” (The Psychology of Loneliness, Campaign to end Loneliness, UK 2020). Solitude é, no entanto, um estado de ser ou estar só que pode ser deliberado ou imposto. Não é necessariamente um sentimento que nos faz sofrer. Pode muito bem ser um tempo de introspeção, de crescimento e desenvolvimento, de reflexão e de maior empatia com quem nos cerca e de nós necessita.
Estudos recentes mostram que loneliness (insistimos, aqui referimo-nos a solidão e não a solitude) tem o mesmo impacto na mortalidade que fumar 15 cigarros por dia e é mais nocivo para a saúde do que a obesidade (Cigna/Ipso, 2018)
Com a pandemia, a solidão, digamos não desejada, ter-se-á agravado e visibilizado. Um fenómeno preocupante, que afeta novos ou não, mas que tem um impacto mais significativo nas pessoas mais velhas. A questão é antiga, mas só tende a aumentar pelo envelhecimento populacional e também em consequência de outros fatores: famílias nucleares; aumento no número de imigrantes; mães solteiras; longos períodos de ‘exclusão’ consequentes a uma vida pós-reforma muito mais longa do que quando, após esta, tínhamos poucos anos de vida; períodos longos também de viuvez; proporção de pessoas que vivem sós e, até mesmo, o uso crescente da tecnologia. De que vale ter 3657 amigos no Face e ninguém para lhe tocar, abraçar, olhar face a face?
O combate à Solidão não será fácil, é uma questão que já tarda em ser resolvida. Poderão, neste momento, estar reunidas algumas condições para que o próximo governo de Portugal crie e implemente, com a urgência devida, uma Estratégia Nacional Para Prevenir e Combater a Solidão: em primeiro lugar o facto de estar a ser formado um governo maioritário do Partido Socialista, em segundo lugar a existência do Programa da OMS Cidade Amiga de Todas as Idades que nos aponta caminhos já trilhados, e, por último, está em curso a Década do Envelhecimento Saudável 2020-30 das Nações Unidas.
Resolvemos, por bem, escrever esta provocação a quatro mãos quando eu, José Carreira, procurei ouvir Alexandre Kalache, Presidente do Centro Internacional da Longevidade no Rio de Janeiro e ex-diretor do Departamento de Envelhecimento e Saúde da OMS a respeito deste tema tão relevante. Pedi-lhe para que, com base na sua experiência internacional médico-gerontológica de quase 50 anos, desse algumas sugestões, considerando o início de um novo governo. Simpaticamente, respondeu o seguinte:
“Políticas públicas viáveis e sustentáveis devem sempre se inspirar no que já foi feito e aprimorá-las. Há uma tendência de ‘reinventar-se a roda’. Quando a OMS lançou o programa “Cidades Amigas das Pessoas Idosas”, que hoje denominamos ‘Amigas de todas as idades”, bem que eu tentei incentivar Portugal a se tornar o primeiro País a abraçar os princípios e pilares que podem fazer a sociedade mais amiga de todas as idades. Embora comecemos através das lentes das pessoas idosas, o impacto se faz sentir em toda a sociedade. Um país pequenino, em franco e acelerado processo de envelhecimento, muito carente de políticas efetivas para quebrar a solidão em que vivem os mais idosos assim como carente de estímulos para os fortalecer laços intergeracionais. A família já está a não dar conta. O desafio que sugiro ao novo Governo é o mesmo: inspirem o mundo, tornem-se um país mais amigo de todas as idades, onde o vencer a solidão seja um objetivo maior. Modelos exitosos a nível de cidades já temos, mas um projeto nacional que sirva de protótipo internacional faz-nos falta. Todos sairíamos ganhando: Portugal, os que aí vivem, de todas as comunidades, grandes, pequenas, urbanas e rurais. Portugal atrairá assim atenção e reconhecimento internacional… e dessa forma os cobiçados dólares prateados serão atraídos. Já corre o mundo a decantada hospitalidade dos portugueses. E a cada visitante que chega, as oportunidades de ‘quebrar’ a solidão, se ampliam, para todos. Só lhes pediria uma coisa: não tentem criar um ‘ministério da solidão’, não é com soluções populistas que se vence a pandemia da solidão, mas através de políticas onde o protagonismo e a inclusão de todos são pilares estruturantes“.
Destacamos o Projeto Radar, uma rede comunitária para apoiar a população 65+ que poderá servir de embrião para o desafio lançado acima: a criação de um “projeto nacional que sirva de protótipo internacional.” O Projeto Radar é da responsabilidade da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa. Um dos eixos de intervenção visa o acompanhamento das pessoas com mais de 65 anos que estejam em situação de isolamento/solidão, proporcionando condições para que estas possam residir mais tempo nas suas casas e evoluir na promoção de novas formas de cidadania e participação no espaço público. A rede de apoio social de proximidade, como por exemplo os vizinhos – “Radares” – assim como a participação comunitária desempenham um papel determinante na luta contra a solidão.
A estratégia deve contribuir para eliminar o sofrimento das pessoas que vivem em solidão e também para garantir a todos uma vida digna. Será fundamental auscultar e chamar à participação todas as entidades – públicas e privadas. As escolas deverão ter um papel fundamental, através do incremento de uma educação que promova a convivência, acabe com os preconceitos sobre a velhice e fomente atividades intergeracionais. A aposta na educação e em campanhas de sensibilização da população são essenciais para lutar contra a solidão. Não olvidemos que a invisibilidade das pessoas mais velhas se agudiza quando estas vivem sós, isoladas, são mulheres, pobres e membros de minorias. “As cidades são lugares cheios de desconhecidos que vivem em estreita proximidade.” (Zygmunt Bauman, Confiança e Medo na Cidade, Relógio D’Água). Talvez a solidão que mais dói seja aquela sofrida quando estamos cercados de pessoas para as quais somos invisíveis.
Um ponto de partida para erradicar os casos de solidão deve ser o combate a todos os tipos de Ismos: a começar pelo sexismo, racismo, LGBTismo e pelo idadismo, terceiro preconceito que mais prejudica a saúde física e mental e a qualidade de vidas das pessoas, depois do racismo e do sexismo. O envelhecimento populacional só o fará aumentar, lembrando sempre que o jovem de hoje será o idoso de amanhã. O idadismo, que lhe parece algo longínquo e nebuloso, está muitas vezes bem próximo. Basta perguntar a alguém que tenha perdido o emprego aos 45 anos e que não consegue a reintegração no mercado de trabalho.
É fundamental criar e implementar a Estratégia Nacional de Prevenção e Combate à Solidão. Para a implementação de uma estratégia efetiva e eficaz são necessários recursos financeiros. Estamos certo de que estaremos perante um (bom) investimento e não uma (má) despesa. Não avançar e continuar a ignorar esta urgência, redundará num custo social, económico e humanitário incalculável.
“Temos o dever de dotar de humanidade a comunidade dos homens.” (Bauman, 2006)