Se o PPD/PSD cedo renegou às suas raízes marxistas, parece ter conservado o princípio leninista postulado por Rui Ramos, de que “uma revolução era, antes de mais, uma questão de arranjar dinheiro para pagar aos revolucionários”.

A revolução lisboeta, cujo âmago se centrou na reorganização administrativa da cidade, assegurou – como a TVI tem demonstrado na investigação jornalística que conduziu em torno do propalado “caso Tutti Frutti” – a remuneração de todos os seus protagonistas. Ademais o número (que diminuiu de 53 para 24) as áreas (a mais pequena era a de São Miguel com 0,05 km2; hoje é a de Santo António, com 1,49 km2), a distribuição de competências e orçamentos, a maior transformação da cidade entre 2005 e 2013 foi a dimensão do poderio Socialista em Lisboa: as juntas que controlavam em 2005 correspondiam a 27 % da área da cidade; em 2013 seriam 69 % (e em 2017, 78 %). A resposta para este melhoramento do desempenho eleitoral não reside apenas na alegada popularidade do edil António Costa nem na virtude executiva dos presidentes de junta Socialistas, mas sim na reforma administrativa que foi negociada então entre Costa e o PSD.

Por outro lado o PCP, opositor do processo, que controlava em 2009 cinco freguesias, reduziu-se ao bastião de Carnide. Os comunistas até que cresceram 1 % entre 2009 e 2013 na votação para as juntas, mas perderam 4/5 das freguesias que controlavam, então extintas na fusão.

O coração do Tutti-fruti centra-se nesta reforma porque a transformação do modelo eleitoral, das estruturas que se submetem a votos, baralhou o funcionamento da cidade violando a prerrogativa constitucional da prevalência temporal das regras eleitorais sobre os mandatos. Para a fusão, recorreu-se à geografia eleitoral (geoeleitoralismo ou Gerrymandering), da wikipedia, “o controverso método de definir em termos de área os distritos eleitorais de um território para obter vantagens no número de representantes políticos”. A tese de mestrado de Diana Morais (Geografia Eleitoral Portuguesa: Análise Análise das determinantes do sentido de voto em eleições legislativas entre 1980 e 2015) explica-o: “contrariamente ao debate teórico que apontava para um esbatimento das clivagens geográficas, a geografia eleitoral é preditora do sentido de voto ao longo do tempo”. Fundidas duas freguesias onde se vota maioritariamente no PSD, sejam elas Lapa e Prazeres, colocando as fronteiras de uma ou outra forma, a presidência seguinte estará assegurada ao partido de Luís Newton, podendo-se também prever o financiamento da Junta (proporcional ao número de habitantes) e até a remuneração do presidente.

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Costa, conforme confessado em inúmeras entrevistas, muito jovem cedo se desmarcou do marxismo-leninismo. . No entanto, assimilou a máxima de Vladimir Illitch de que “a melhor forma de controlar a oposição é sermos nós a liderá-la”.

Não existiu oposição à liderança do PS na cidade de Lisboa: entre 2007 e 2009 os movimentos “independentes” e “esquerdistas” protagonizados por Helena Roseta e Sá Fernandes foram fagocitados pela dinâmica frentista camarária e em 2013 até o Bloco perderia o único vereador (em 2017, o único vereador – Ricardo Robbles – perderia magicamente a credibilidade semanas depois de firmar o acordo coligativo com Fernando Medina). Porque herdada, a presidência do agora ministro das finanças, foi controversa; Porque inesperada, na medida em que Costa prometeu à cidade continuar na câmara mesmo que vencesse as primárias de 2014, a entronização do socialista Portuense nos Paços do Concelho foi criticada; Porque caustica, com obras transformadoras nas principais artérias da cidade, o meio mandato de Medina foi alvo de forte contestação e teria sido fácil para a Direita se lhe opor, galvanizando uma candidatura bem-sucedida às autárquicas de 2017.

Sucedeu o contrário. Sabemos que o principal partido da oposição recusou apoiar a ex-ministra Assunção Cristas. Um boato assegura que Pedro Passos Coelho, então presidente do PSD, convidou tantos putativos candidatos à CML como em 2011 convidara a conduzir o ministério das finanças. Encabeçar, portanto, uma candidatura à câmara mais poderosa do país contra um autarca “paraquedista”, apenso e contestado, era – no ceio do partido que controlava o maior grupo parlamentar da Assembleia da República – tão pouco apelativo como governar as finanças de um país intervencionado pela Troika. Porquê?

Se Callon escreveu que “democracia delegativa (…) assim se encontra reduzida à agregação de vontades individuais”, deduzimos que nunca houve vontade para que os partidos de Direita se batessem pela camara de Lisboa. Depois de 2009, e do acordo firmado pela reorganização administrativa da cidade em 2012/13, o PSD não voltou a ter vontade de vencer a Câmara Municipal de Lisboa.

Paralelamente, o PS não voltou a ter vontade de disputar as juntas de freguesia do Areeiro, Avenidas Novas, Santo António, Belém ou Estrela qual entregou às mãos de Luís Newton em 2013.

Dedicando a sua magnum opus “Como Perder Uma Eleição” a António Costa  – “grato por tudo aquilo que me ensinou” –  escreveu o propagandista Luís Paixão Martins, referia-se com certeza ao desempenho do PS na Estrela nessa fatídica eleição. “A Caminho da Estrela” – a candidatura socialista corajosamente liderada por Luís Filipe Monteiro, presidente da junta de freguesia de Santos o Velho – foi então um compêndio de tudo o que um proposto não deve fazer, excepto querendo perder. Após a fusão, onde se verificassem duas freguesias das quais apenas uma era controlada pelo PS – como em Campo de Ourique ou em Santa Clara– era estrategicamente elementar assumir que o presidente da junta em extinção seria naturalmente o melhor candidato à nova junta.

Na Estrela, pelo contrário, Costa tentou forçar, até às últimas consequências, a imposição de João Tiago Silveira como cabeça de lista.

Derrotada a hipótese numa assembleia de militantes, órgão máximo da estrutura, a candidatura foi minada por dentro, preenchida, em segundo lugar, por Silveira e por uma massa de pesos-mortos, muitos provenientes da JS, que em momento algum deram a cara pela candidatura.

Um inédito grupo de cidadãos eleitores (GCE) qual incluía um antigo dirigente da JS Loures no ano em que Costa concorrera à câmara, granjeou trezentos decisivos votos oriundos do espaço político do PS. Os concorrentes não receberam material de campanha, nem da concelhia de Duarte Cordeiro, nem da FAUL. Costa anunciou arruadas onde não compareceu.

Para o eleitorado, a campanha deixou claro que a dinâmica do concelho – que venceu a CML com o seu melhor resultado percentual, apesar de ter perdido quase 7000 votos – deixava a Estrela para trás. E apesar de todas as dificuldades, Monteiro – um dos poucos autarcas assumidamente apoiante do Secretário-Geral eleito em funções – foi derrotado por apenas 34 votos.

Depois das eleições, os eleitos – numa situação de empate técnico – foram forçados a aprovar o executivo do PSD ao invés de solicitar uma segunda volta clarificadora, pois PSD cirurgicamente, aprovara executivos cor-de-rosa noutras juntas da cidade. Nas duas autárquicas seguintes, alguns militantes em seu torno procuraram lançar uma candidatura bem-sucedida à junta. Sem sucesso. A estrutura responsável, hoje liderada por Pedro filho de Costa, boicotou como o Pai, todas as tentativas de candidatura. Por duas vezes entregaram-na ao Livre e aos, cito, “merdosos” que assegurariam a vitória do PSD e de Newton. Seria de propósito?

Uma compensação pelo mau desempenho do PSD Lisboa nas corridas camarárias de 2013 e 2017?

À expressão “tratado de Tordesilhas” empregue pela imprensa para explanar as divisões territoriais Lisboetas acordadas entre Newton e Cordeiro, escutei-a certamente mais de cinquenta vezes ao longo desta década, do interior dos Paços do Concelho, à esplanada do Café Vianna em Braga. Toda a gente da bolha política, de Norte a Sul do país, sabia porque razão as candidaturas da Direita em Lisboa eram tão fracas e as do PS, em territórios como o da Estrela, tão fracas eram. Todos sabiam como Costa transformara os 29 % de 2007 em 51 % em 2013. E a que preço.

É também curioso que os mesmos responsáveis políticos, “jovens turcos” das “alas radicais”, ou como dizia António José Seguro, “porreiros e de Esquerda”, sempre ávidos de traçar e exigir o traçamento de “linhas vermelhas” se encontrassem tão confortáveis na negociação com essa Direita que em 2017 ainda incluía André Ventura, ou não estivesse o então vereador lourense laranja, implicado no infame saco azul da distrital do PSD. Cordeiro e Newton ter-se-ão inspirado no duo de Oeiras “Isaltino e Emanuel Martins” cuja relação cirandou os mesmos meios, incluindo judiciários.

Provadas as suspeições levantadas pela presente peça jornalística, deve ficar assente que a confirmação das mesmas não prova um pacto datado de 2017, encetado entre o então presidente Medina e a direção da sua oposição. Sacrificando os próprios companheiros (ou camaradas) de partido, boicotando candidaturas ora nas juntas ora na câmara, estabeleceram-se conluios que permitiram utilizar o erário municipal para satisfazer a necessidade de várias Ivones Cunha Gonçalves em ambos os Partidos (e de outros): ordenado.

À sombra deste emaranhado de dependências, a carreira do seu principal beneficiário cresceu desproporcionadamente, vencendo eleições às quais se candidatou inexplicavelmente sozinho. Ao seu sucessor, sucederia o mesmo em 2017.

O âmago do tutti-fruti não são os esquemas soturnos com que um punhado de figurões menores das bases autárquicas dos principais partidos, esmifraram os cofres da capital para subsistir de cargos fictícios (para os quais, parafraseio, se estavam “a cagar) ao longo da última década e meia. Mas sim como, com um orçamento inigualável e comprando a oposição local, um ministro secundário do governo de José Sócrates se converteu na principal figura do sistema político português.