Sejamos bem claros: não é aceitável que o sofrimento em fim de vida se torne destrutivo ou insuportável. Disso tratam os Cuidados Paliativos, praticados por equipas de saúde devidamente preparadas. Fazem-no através dos avanços da Medicina moderna e ajudam o paciente a viver com Dignidade — ao longo de anos, meses, semanas –, assistindo-o até à morte, não o abandonando. E divergem claramente da eutanásia, na natureza dos seus objetivos e dos seus meios. Lamentavelmente, 70 % dos portugueses que precisam não recebem estes cuidados, básicos para a situação de fim de vida, cuidados ainda maioritariamente envoltos em desconhecimento e preconceito.

Para resolver esta questão do sofrimento em fim de vida, para aplicar a casos supostamente excepcionais e com regras ditas estritas, apressam-se os nossos deputados a legalizar a eutanásia, sem o terem discutido na campanha eleitoral que veio a conduzir à sua eleição (estranho, não?!). Os milhares de portugueses ainda sem acesso aos Cuidados Paliativos constituem-se numa premência social, um verdadeiro problema de saúde pública que deve instar esses senhores deputados a contribuir para viabilizar medidas para os tratar e ajudar a viver com Dignidade. E eles não são casos excepcionais. Seguramente, a premência dos senhores deputados parece ser outra, a de uma agenda política distorcida, mal fundamentada, pelos vistos muito alheada das prioridades reais dos seus eleitores. Que grande equívoco este. Mas há mais.

Neste debate sobre a eutanásia, um tema com contornos de indiscutível complexidade, em que necessitamos de ser rigorosos, continuamos a esbarrar com distorções, eufemismos, contradições. Tudo para favorecer uma narrativa que crie ilusões, um debate em que as emoções cavalguem a razão.

Insistimos no rigor: com a eutanásia, a morte não é assistida, é provocada, e não é um eventual consentimento da pessoa doente que muda a natureza do acto – um homicído a pedido. A eutanásia não soluciona nem acaba com o sofrimento, acaba sim com a vida do que sofre, o que é desumano, um retrocesso civilizacional e nada solidário. A eutanásia não torna a morte mais digna e é a vida que deve ter dignidade até ao fim. Não se trata do direito a morrer, trata-se de criar um pretenso direito, que é o de ser morto por outro, algo que não existe em nenhum ordenamento jurídico no mundo, e com este pseudo-direito virá depois um dever de matar. Ilude-se com a promessa de respeitar a liberdade individual, quando o que se faz é dar mais poder a outro para decidir sobre a vida de terceiros, o que é muito perigoso. Ilude-se a liberdade e não se cuida do Bem comum. Cria-se progressivamente uma cultura de normalização da morte a pedido, que pressionará os mais vulneráveis – as pessoas com menos meios, as pessoas com deficiência e as pessoas idosas – e os porá certamente em risco.

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Faz-se crer que a lei será para casos excepcionais – mais uma ilusão — quando a aplicação das propostas rapidamente conduz a conclusões contrárias. Os factos estão lá, não podem ser escamoteados: na Holanda, mais de 6000 casos por ano, mais de 16 mortes por dia, e muitos não estão em fim de vida. Cada vez são mais os dementes que não podem confirmar um pedido, as pessoas com problemas de saúde mental, os casais que não querem sobrecarregar ninguém e pretendem ser mortos juntos. Poderíamos falar ainda dos milhares de casos no Canadá, na Bélgica. Casos excecionais?! Sociedades avançadas e humanistas?!

A ideia de que se trata de um acto médico ajuda a branquear a natureza do acto. A eutanásia não é um acto médico, como o reiterou recentemente a Associação Médica Mundial. E estamos a tratar da legalização, não da versão suave “despenalização”, pois o que se pretende é mobilizar os meios do Estado ao serviço desta decisão.

Este não é um debate confessional, como nos querem fazer crer para acentuar preconceitos antirreligiosos dominantes, muito menos um debate esquerda-direita. Este é um debate sobre direitos humanos, sobre respostas da sociedade moderna aos mais vulneráveis, sobre o presente e o rumo futuro do nosso colectivo.

É duro escrever, mas mais dura é a realidade perante os nossos olhos: parece mais fácil, mais rápido e mais barato fazer uma lei sobre eutanásia que tomar medidas para oferecer mais cuidados de saúde aos mais frágeis. Contradições e retrocessos, sobretudo de um parlamento de costas voltadas para a realidade. Afinal onde estão as nossas prioridades?

Em nome dos Direitos Humanos, da Dignidade, em nome de milhares de portugueses, não legalizem a eutanásia. Não precisamos dela.

Médica de C.Paliativos, ex-deputada

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