A questão da Eutanásia que tem ocupado nos últimos dias o espaço público, sem que tenha sido tópico ou bandeira eleitoral em Outubro passado, é como o palito no bolo para avaliar o estado da Política.
Era uma expressão que, nas décadas de 60 e 70, o meu Mestre usava para avaliar cirurgiões e académicos, expondo actos médicos desnessários, porque nenhuns benefícios traziam ao tratamento da doença e à qualidade de vida do doente, ou conclusões científicas obtidas sem fundamento metodológico rigoroso e produto de sobranceria e ignorância.
Na Política, aplicam-se os mesmos princípios com outras designações. Superficialidade, leveza na análise em detrimento da profundidade e rigor, oportunismo sobrelevando oportunidade. São os sinais do Tempo que importa não ignorar se queremos defender uma sociedade aberta, livre, responsável, tolerante, progressiva e participativa. Estes temas, fracturantes como soe dizer-se, são como o palito para testar a cozedura do bolo! A proposta de lei para a legalização da Eutanásia é, por isso, exemplar.
Invocam os seus promotores o direito de cada um escolher o momento e a forma de uma Morte digna. Vida e Morte com dignidade são, sem dúvida, valores e aspiração de todos nós. Vida e Morte são indissociáveis. Não escolhemos viver, somos acaso numa necessidade que ultrapassa a nossa dimensão individual, tantas vezes egoísta e demasiado auto-centrada, sejam esses acasos o produto dum desígnio global teilhardiano que procura dar à aventura da Vida um sentido e uma dimensão espiritual, ou apenas expressão do egoísmo da Biologia – the selfish gene – cuja missão é a perpetuação da Vida para assegurar a sua evolução no sentido de uma complexidade progressiva, determinada pelas forças do acaso e da mecânica do caos.
From such a simple beginning… foi a frase com que Darwin encerrou a sua obra monumental A Evolução das Espécies, e que traduz a perplexidade, o encanto sublime e o desafio permanente à compreensão da Vida e da sua evolução neste nosso planeta. A Morte e a Vida estão interligadas, como num pas-de deux dum ballet imaginário e sem fim! Uma inevitabilidade enquanto durar a aventura na Terra!
E a imortalidade ou amortalidade, como alguns sugerem, é uma ilusão, que algumas descobertas sobre mecanismos moleculares determinantes do envelhecimento celular ou algoritmos supercomplexos mimetizando actividade neuronal parecem potenciar, mais para estímulo à procura incessante de novas fronteiras do Conhecimento, do que sinal de um novo paradigma da organização da Vida. Se a Vida não foi uma decisão nossa individual, consciente e deliberada (os nossos progenitores exerceram esse poder por nós), o que dela fizermos e como a vivemos é uma responsabilidade individual numa luta, sem misericórdia, com e pelas nossas circunstâncias.
Este exercício pressupõe valores e um deles que é fundamental – a Liberdade, de sermos, escolhermos e procurar o nosso caminho individual e como membros da Sociedade humana. E de dar um significado e uma utilidade à Vida que usufruímos nas suas dimensões, individual, social e colectiva. Por isso, a nossa Liberdade tem um contraponto: a Responsabilidade, perante nós e os outros.
A História foi também a desse combate, da Vida sobre a Morte, esta percebida de início como um acto transcendente ou divino, depois como a consequência das doenças as quais fomos conquistando cada vez mais e assim prolongando a sobrevivência humana graças à Ciência e ao desenvolvimento da Medicina, mas também da organização social e económica que permitiu o alargamento destes benefícios a cada vez maior número de pessoas. Essa é a dimensão da nossa responsabilidade social no ofício de viver!
Defender a Vida, prolongá-la com Qualidade e minorar o sofrimento são pilares do alicerce moral, ético e profissional de todos, médicos, enfermeiros, técnicos e outros que fazem da Saúde e do tratamento das doenças, dever e missão.
Viver é também para cada ser humano uma responsabilidade tripla: biológica, primeiro que tudo – somos parte duma cadeia de transmissão da Vida – depois é individual – não a desperdiçar e dela dar o melhor uso – e por fim é social – não estamos sós e por isso temos esse dever de contribuir para o Bem Comum, ultrapassando pela inteligência e pela Cultura o egoísmo que a Biologia nos impõe.
Há, pois, uma responsabilidade perante a Vida que transcende a dimensão individual. E a forma como as sociedades tratam a Vida e a Morte são o espelho daquilo a que chamamos Civilização e um sinal do Tempo que vivemos. E é, nesse domínio, que a Política conta. Fizemos do prolongamento da sobrevivência de cada ser humano com dignidade, do acesso aos bens individuais e sociais, como a Educação, a Saúde, a Justiça e outros, um objectivo e uma missão, que são expressão dum compromisso indeclinável e civilizacional. E desse compromisso faz parte a defesa da Vida, com Qualidade e Dignidade até ao seu fim inelutável, a Morte.
A defesa da Vida – não matarás! – é um princípio intemporal que fomos revestindo de complexidade, recursos e meios de intervenção, desde os cuidados pré-natais, à Medicina clínica, ambulatória e hospitalar, aos Cuidados Continuados e aos Cuidados Paliativos no fim da Vida. Esse foi e tem sido o nosso rumo, numa sociedade aberta e livre e para cujo desideratum se impõe a disponibilização de meios e recursos.
Viver até ao fim com Dignidade e com o menor sofrimento possível é, pois, um dever de civilização e uma obrigação da Política. Por isso foi clara ao longo dos tempos a tomada de posição dos profissionais de Saúde plasmada nos seus códigos de Ética e Deontologia profissional e esse Juramento, que é um compromisso moral e ético, prevalece sobre qualquer outro dever, desde a obediência à autoridade ao egoísmo individual de cada um de nós.
Como médico, esse é o meu dever indeclinável e, saúdo identificando-me totalmente com a posição da Ordem dos Médicos claramente assumida pelo seu Bastonário. E a Ciência tem-nos ajudado a compreender melhor, com objectividade e independência, os limites da nossa acção e a prevenir esforços fúteis de encarniçamento terapêutico, causa de sofrimento evitável e de diluição da Dignidade fundamental. De facto, entre o primado do nosso Juramento e um acto deliberado, sancionado por Lei e porventura imposto pela Autoridade, de pôr fim à vida humana, vai a distância dum salto intransponível!
Por tudo isto me surpreende a decisão, a pressa e a ligeireza dos parlamentares ao pressionarem um tema, que não discutiram nem propuseram como bandeira nos seus programas eleitorais, creio que apenas com uma excepção, a do Bloco de Esquerda, que representa cerca de 10% do eleitorado. Como entendem o exercício da responsabilidade pública? Como pretendem implementar essa lei contra o parecer das ordens profissionais na Saúde? Que negociação foi feita e conseguida que permita a implementação da Lei se aprovada?
A criação administrativa contra a Ordem dos Médicos de um novo grupo profissional – eutanasistas – prontos a esquecer o juramento e obedecer ao Poder? E numa época de cost-awareness e cost-containment (soa melhor no original) na qual prolongar a Vida com Qualidade e Dignidade requer recursos financeiros e tem custos elevados, quem nos garante que não emergirá sub-reptícia uma filosofia pragmática que justifique a eliminação de alguns, já não produtivos, para bem da maioria que produz? Já tivemos exemplos de como considerações porventura financeiramente compreensíveis atrasaram a introdução de inovação terapêutica e custaram vidas! E todos sabemos, e melhor do que nós têm a obrigação os Políticos que nos representam no Parlamento, que há sérias limitações à generalização indispensável dos cuidados continuados e paliativos, e que isso, sim, é um problema prioritário.
Eu creio bem que a questão é outra e por isso é tão preocupante sobre o estado da Política entre nós. O que está em jogo nesta corrida apressada e ligeira para uma aprovação legal da Eutanásia no Parlamento – chamam-lhe morte assistida, ao menos fossem coerentes e dissessem morte induzida por terceiros – é uma visão da Sociedade que promove a submissão dos valores fundamentais da Vida ao preconceito ideológico de que tudo compete ao Estado desde o direito de viver e também de morrer, incluindo sancionar a Morte por acto legal em despacho administrativo cumprido por próceres obedientes.
É um aproveitamento oportunista duma maioria política que nunca assumiu como bandeira eleitoral esse desígnio, porque temem que essa maioria seja irrepetível e se perca a oportunidade. A esse oportunismo sacrificam com ligeireza estonteante valores estruturantes da Sociedade, porque o seu combate é outro, é global, é por uma Sociedade sem esses valores que marcaram a escolha fundamental dos Portugueses desde Novembro de 75, por uma sociedade livre, aberta, tolerante, respeitadora da Vida e progressiva.
Ao Estado não compete decidir sobre a Vida e a Morte, apenas criar as condições para que a Vida de cada cidadão possa fruir com liberdade e igualdade perante a Lei e com acesso equitativo aos bens públicos fundamentais. E, se cada um, no auge dum tormento psicológico ou físico, abdicar da sua responsabilidade perante a Vida, pode fazê-lo, chama-se Suicídio, é uma dor e uma amargura infinitas, para a qual a Medicina continua lutando para a sua Prevenção.
Não compete ao Estado legalizar a Morte! E é toda esta reflexão que permanece escondida nos corredores parlamentares, abafada pelas conivências partidárias e escondida na leveza com que tantos minimizam a responsabilidade da Política, do Bem-Comum e da Civilização. Não é uma questão de Esquerda ou de Direita, de conservadores empedernidos versus reformadores sociais (o Secretário-Geral do Partido Comunista percebeu-o claramente e a sua síntese Não Matem que as televisões transmitiram, foi eloquente!).
Legalizar a Morte Induzida não é uma necessidade social – é uma violência política que é preciso recusar em nome da Civilização. Porque as necessidades situam-se no dever que, como sociedade civilizada, temos para assegurar a melhoria e generalização de cuidados de Saúde de qualidade e em tempo útil, sem discriminação social, familiar ou económica, na difusão dos Cuidados Continuados e Paliativos, proporcionando dignidade até ao fim da Vida e minorando o sofrimento.
Esse é que é o combate fundamental, para o qual todos somos necessários e todos devemos ser convocados, na diversidade das nossas opiniões, competências e espírito de serviço. Essa é a grandeza da Política: identificar o essencial, perseguir o fundamental, melhorar a qualidade da Vida reduzindo a dor e o sofrimento e mobilizar os cidadãos com clareza e determinação. Não este exercício apressado, conjuntural, sem que tivesse havido a coragem política de o apresentar como uma proposta clara ao último escrutínio eleitoral donde emergiu o actual quadro parlamentar, um exercício político que está ao serviço duma visão totalitária, de poder absoluto que pretende tudo submeter e condicionar, desde a organização da Vida ao acto final da Morte!
José Fernandes e Fernandes é Professor Catedrático da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa