A questão da Eutanásia voltou à ribalta política. Há na proposta de lei um artifício de linguagem – morte medicamente assistida – que pretende escamotear o desafio ético e moral de pôr fim a uma vida por intervenção médica.

O nosso código profissional tem um alicerce moral e ético irrecusável: defender a Vida e prolongá-la com qualidade, tratar as doenças reduzindo o sofrimento, usando para isso competência, dedicação, empatia e compaixão. Talvez haja uma percepção errada de que os médicos tenderão a prolongar a acção terapêutica para além do desejável, induzindo sofrimento fútil aos doentes. A isso chama-se encarniçamento terapêutico e é objecto de particular atenção das equipas médicas para que essa futilidade terapêutica seja combatida.
Invocam os promotores da legalização da Eutanásia o direito de cada um escolher o momento e a forma de uma Morte digna, como se a Vida fosse mais uma commodity, propriedade de cada um. Não foi nossa a decisão de começar a viver, somos um acaso numa necessidade que ultrapassa a nossa dimensão individual, egoísta, demasiado auto-centrada. Possam esses acasos ter uma dimensão transcendental como produto dum desígnio global teilhardiano com sentido e dimensão espiritual, ou serem apenas a expressão do egoísmo da Biologia – o gene egoísta, The Selfish Gene, título dum livro admirável de Richard Dawkins – cuja missão é a perpetuação da Vida, numa evolução de complexidade progressiva, determinada pela organização molecular dos genes, pela interacção com a Natureza e pelo acaso.

From such a simple beginning… foi a frase com que Darwin encerrou a sua obra monumental A Evolução das Espécies, e que traduz perplexidade, encanto sublime no desafio permanente de compreensão da Vida e da sua evolução neste nosso planeta. E nessa evolução Morte e a Vida estão interligadas, como num pas-de deux dum ballet imaginário e sem fim! Uma inevitabilidade enquanto durar a aventura na Terra! Viver e Morrer com dignidade e com o menor sofrimento possível são, sem dúvida, valores e aspiração de todos nós. São indissociáveis.

Se a Vida não foi, portanto, uma decisão nossa individual, consciente e deliberada (os nossos progenitores exerceram esse poder por nós), o que dela fizermos e como a vivermos é a nossa responsabilidade individual, numa luta sem misericórdia com e pelas nossas circunstâncias. Este exercício pressupõe valores e um deles é fundamental – a Liberdade, de sermos, escolhermos e procurar o nosso caminho individual como membros da Sociedade humana. E de dar significado e uso responsável à Vida que usufruímos na nossa dimensão, individual, social e colectiva. Viver é para cada ser humano uma responsabilidade tripla: biológica, primeiro, porque somos parte duma cadeia de transmissão da Vida; depois individual – não a desperdiçar e dela dar o melhor uso – e por fim social – não estamos sós e por isso temos esse dever de contribuir para o Bem Comum, ultrapassando pela inteligência e pela Cultura o egoísmo que a Biologia nos impõe.

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A responsabilidade perante a Vida transcende a dimensão individual. E a forma como as sociedades tratam a Vida e a Morte é o espelho daquilo a que chamamos Civilização e sinal do tempo que vivemos. E é nesse domínio que a política conta, tendo como objectivo e missão o prolongamento da sobrevivência de cada ser humano com dignidade, o acesso com equidade aos bens individuais e sociais, como a Educação, a Saúde, a Justiça, Solidariedade Social e Dignidade do Trabalho. São um compromisso indeclinável e civilizacional. E desse compromisso faz parte a defesa da Vida, com qualidade e dignidade até ao seu fim inelutável, a Morte. A defesa da Vida – não matarás! – é um princípio intemporal que fomos revestindo de complexidade, recursos e meios de intervenção, desde os cuidados pré-natais à Medicina clínica, ambulatória e hospitalar, aos cuidados continuados e aos cuidados paliativos no fim da Vida. Esse foi e tem sido o nosso rumo, numa sociedade aberta e livre.

Viver até ao fim com dignidade e com o menor sofrimento possível é, pois, um dever de civilização e uma obrigação da política. Por isso foi clara ao longo dos tempos a tomada de posição dos profissionais de Saúde plasmada nos seus códigos de Ética e Deontologia profissional e esse Juramento, que é um compromisso moral e ético, que prevalece sobre qualquer outro dever. O primado do Juramento sobre o Dever da Obediência é um atributo irrecusável do profissionalismo médico. Como médico, esse é o meu dever indeclinável e, saúdo identificando-me totalmente com a posição da Ordem dos Médicos. A Ciência tem-nos ajudado a compreender melhor, com objectividade e independência, os limites da nossa acção e a prevenir esforços fúteis de encarniçamento terapêutico, causa de sofrimento evitável e de diluição da Dignidade fundamental. Mas entre o primado do nosso Juramento e um acto deliberado de pôr fim à vida humana, sancionado por Lei e porventura imposto pela autoridade, vai a distância intransponível dum salto impossível! E todos sabemos, e melhor do que nós têm disso a obrigação os políticos, que há sérias limitações à generalização indispensável dos cuidados continuados e paliativos, e que isso, sim, é um problema prioritário.

Foi uma prioridade para a Faculdade de Medicina e sinal inequívoco de compromisso. Como Director apoiei o Mestrado em Cuidados Paliativos dirigido pelo Prof. A. Barbosa que integrou a primeira iniciativa da Cátedra Gulbenkian, homenagem a Calouste Gulbenkian e à Fundação, e que felizmente teve continuidade. Mobilizou outras instituições públicas e privadas e teve como objectivo contribuir para a formação específica nesta área. Como médico e cirurgião vascular testemunhei como uns bons cuidados paliativos podem tornar suportável o sofrimento e permitir uma Morte mais tranquila e pacífica perante a irreversibilidade da doença. Estou consciente da importância deste sector no universo complexo que é hoje a Saúde e a prestação de serviços médicos. É uma prioridade e deveria merecer mais atenção dos responsáveis políticos, numa sociedade mais envelhecida, com mais doenças que podem reduzir a qualidade e a autonomia da Vida. Infelizmente, não vejo que isso esteja a acontecer na dimensão necessária.

Por tudo isto me surpreende esta decisão parlamentar neste contexto e tão reveladora sobre o estado da política. Espelho de uma visão da Sociedade que submete os valores fundamentais da Vida ao preconceito ideológico de que tudo compete ao Estado, desde o direito de viver ao de morrer, incluindo o de sancionar a Morte por acto legal em despacho administrativo. A não ser que perante as enormes dificuldades financeiras que têm comprometido a acção do SNS e perante o envelhecimento da população e custos associados para o seu tratamento, se pretenda impor pragmatismo que justifique a eliminação de alguns, não produtivos, para bem da maioria que produz. Já tivemos exemplos de como considerações financeiras atrasaram a introdução de inovação terapêutica e custaram vidas!

Ao Estado não compete decidir sobre a Vida e a Morte, apenas criar as condições para que a Vida de cada cidadão possa fruir com liberdade e igualdade perante a Lei e com acesso equitativo aos bens públicos fundamentais. E, se cada um, no auge dum tormento psicológico ou físico, abdicar da sua responsabilidade perante a Vida, pode fazê-lo, chama-se suicídio, é uma dor e uma amargura infinitas, com a qual a Medicina continua lutando para a sua Prevenção. Legalizar a Morte Induzida não é uma necessidade social – é uma violência política que é preciso recusar em nome da Civilização. O nosso dever como sociedade civilizada é de assegurar a melhoria e generalização de cuidados de Saúde de qualidade e em tempo útil, sem discriminação social, familiar ou económica, a promoção dos Cuidados Continuados e Paliativos, proporcionando dignidade até ao fim da Vida e minorando o sofrimento.

Esse é que é o combate e a grandeza da Política: identificar o essencial, procurar melhorar a qualidade da Vida e reduzir dor e o sofrimento.