O que é que se passa? Parece que de repente a sociedade enlouqueceu. Hoje em dia somos facilmente categorizados, o diálogo escasseia e o chamado senso comum tornou-se o nosso pináculo de sabedoria.
A minha aposta é que a escassez de sentido e o medo têm se apoderado das nossas fragilidades psíquicas e nos condicionado a adotar posturas pouco sensatas. Dessa forma, o Nietzsche afirmava de algum modo que o Homem fraco tende a agrupar-se de modo a ganhar força. Esses são indivíduos que se sentem impotentes, oprimidos ou incapazes de impor a sua vontade ou exercer sua influência. Segundo Nietzsche, a fraqueza é um resultado direto da moralidade dominante, que celebra a humildade, a abnegação e a compaixão, em detrimento da autoafirmação e da coragem.
O homem fraco, para ganhar voz e poder, frequentemente se une a coletivos, pois, em grupo, é capaz de obter força e influência que lhe faltam individualmente. Ao se identificar com um coletivo, o homem fraco encontra solidariedade e apoio, o que pode aumentar a sua autoestima e lhe proporcionar um sentido de pertença. Essa união ao coletivo também permite que o homem fraco canalize as suas frustrações e ressentimentos contra um inimigo comum, geralmente outra pessoa ou grupo que representa uma ameaça aos valores e ideais do coletivo.
O problema é que isto potencia a chamada sombra coletiva. A sombra coletiva é uma dimensão do inconsciente coletivo, que abrange os aspectos reprimidos, negados ou indesejáveis de uma sociedade ou grupo. Esses aspectos, quando não são reconhecidos e integrados de forma consciente, podem conduzir a comportamentos e atitudes destrutivas, tanto a nível individual como coletivamente.
A sombra coletiva está relacionada ao homem fraco de Nietzsche de várias formas. Primeiro, porque o homem fraco, ao se unir a um coletivo, pode contribuir para a formação e perpetuação da sombra coletiva. Ao se identificar com os valores e ideais do grupo, o homem fraco pode projetar inconscientemente as suas frustrações e ressentimentos no “outro”, ajudando a criar e a reforçar a sombra coletiva.
Além disso, o homem fraco pode ser atraído pelo coletivo, precisamente porque este oferece um espaço onde ele pode projetar e expressar a sua sombra pessoal, que também está relacionada aos aspectos indesejáveis ou reprimidos de si mesmo. Ao se unir ao coletivo e ao identificar os seus inimigos, o homem fraco encontra uma maneira de expressar e externalizar os seus próprios medos, inseguranças e ressentimentos, sem ter de enfrentá-los diretamente.
A relação entre o homem fraco de Nietzsche e a sombra coletiva postulada por Carl Jung também se manifesta na dinâmica do extremismo, radicalismo e tribalismo ideológico. Quando a sombra coletiva não é reconhecida e integrada de forma consciente, ela pode conduzir a pessoa a adoptar comportamentos extremistas e intolerantes, alimentados por um sentimento de identidade ameaçada e a necessidade de proteger os valores e ideais do grupo. O homem fraco, unindo-se ao coletivo e adotando as suas ideologias, pode se tornar parte dessa dinâmica, contribuindo para o aumento da polarização e do conflito.
Os algoritmos através do desenvolvimento tecnológico e o progressismo também conduziu ao tribalismo ideológico. Isto sucede devido à sede dos holofotes de alguns influencers, que por vezes dilui essa mesma sede numa forma de compaixão universal. Aqui sucede algo interessante, que pode ser entendido através da brilhante análise de Slavoj Zizek. Zizek verificou que alguns progressistas e liberais brancos negam o direito à sua identidade particular num falso senso de auto-humilhação para que, de forma muito subtil e por vezes inconsciente (por vezes nem tanto) reservem uma posição universal. Zizek conta-nos que estes liberais brancos estão preparados para se humilharem dizendo que são os piores, que são os culpados de todos os problemas atuais que varias minorias enfrentam, obtendo gratificação ao jogar este tipo de jogo. Dessa forma e segundo Zizek, estes liberais brancos sentem-se atraídos por políticas identitárias, porque as minorias podem ter as suas identidades particulares e, apesar destes sujeitos renegarem a sua identidade, conseguem manter o papel de guardiões da universalidade e evidentemente beneficiarem com isso.
Este fenómeno pode ser verificado nas gravações de manifestações que circulam nas redes sociais, onde existe um claro craving por atenção de alguns influencers destes bastiões da “universalidade”, não certamente com propósitos benignos, mas com a finalidade de preencher as suas carências egóicas. Todavia, o pior é que depósitos de cargas ocas nunca preenchem ninguém e por vezes estas pessoas são capazes de se levar ao expoente da excentricidade para provocar sensacionalismo e obterem visibilidade.
Por outro lado, é necessária uma crítica aos conservadores de direita, porque é curioso verificar que existe nos conservadores um medo terrível à diferença e a tudo o que é de algum modo universal. Se o desejo egóico dos liberais de esquerda por vezes os conduz a uma certa iconoclastia, já que podem ser símbolos deles próprios no mundo, o conservador só consegue manter a sensação de identidade em grupos também eles bem identificados, ou pode perder a noção de quem é ou de quem lhe disseram que é. Por vezes isso se dá devido a um logos demasiado rígido e o receio de perder a estrutura desencadeia fragilidades internas.
Deste modo, Erich Neumann fala muito acerca da psicologia do bode expiatório, que seria um corredor de catarse que conduzia à eventual eliminação da sombra coletiva e ao ajustamento à moral coletiva. Na atualidade, muitas pessoas referem-se ao bode expiatório como as chamadas ‘minorias’ ou o estrangeiro. Por ser judeu e ter testemunhado o período das grandes guerras, ele estava ciente deste processo que as envolve e sob o qual, na segunda guerra, ganhou ênfase o mecanismo do bode expiatório em modo de ataque aos judeus sob a tutela nazi. Todavia é esta particularidade que me fascina em Neumann.
Nessa medida, Neumann não se deixou fixar pela sua eventual raiva aos Nazis e foi consciente ao ponto de perceber que a sombra reina em todas as sociedades, culturas e principalmente Homens arcaicos que se deixam cegar pelos seus medos. Claro que, de forma muito perspicaz e original, ele dissertou que uma das formas dos conflitos psíquicos inconscientes se manifestarem seria através do mecanismo do bode expiatório que fluia para as minorias ou para o estrangeiro. Onde poderiam ser incluídos os conflitos antissemitas nazistas. Verificamos de algum modo isso hoje em dia, sendo que um dos problemas do séc. XXI com a nova ascensão da extrema direita, é verificamos a organização de ataques à expressão das minorias étnicas e culturais. Mas parece-me importante realçar este cariz de lato sensu, porque apesar de determinadas sociedades organizarem o seu dito ataque a minorias específicas, o problema propriamente dito não está logicamente nas minorias, mas no facto de serem o factor estranho pela qual a mente arcaica expia os seus medos inconscientes e ambíguos. Num exemplo prático, é dessa forma que o puritano obtém a sua gratificação neurótica através do julgamento do outro, porque é o mais próximo que chega a desafiar a sua personalidade.
É sobre esta particularidade que chamo à atenção para o génio de Neumann. Ele sabia perfeitamente que a sombra podia instalar-se a qualquer momento desde que a luz da consciência coletiva deixasse de iluminar essa zona. Dessa forma seria insipiente achar que só os grupos eticamente desvalorizados seriam alvos da projeção da sombra coletiva, quando essa projeção pode ser voltada para cima, ou seja, para o grupo daqueles que têm “mais valor”. Logicamente “valor” esse atribuído pela sociedade. Aqui Neumann criticava de algum modo a análise de Freud que entendia estes movimentos perante a hierarquia como o assassínio do pai e do patriarcado.
A verdade é que a sociedade tem uma tendência cíclica e existe um determinado provérbio oriental muito conhecido e interessante que diz algo do género “Homens fortes geram tempos fáceis e tempos fáceis geram Homens fracos, mas Homens fracos criam tempos difíceis e tempos difíceis criam Homens fortes”. Nessa medida uma sociedade estável e próspera tende a um determinado momento a fragilizar. A tender para o hedonismo, para o princípio do prazer. Assim, segundo a conceção de Neumann, o excelente e o trabalhador seria encarado como o ‘estranho’ e por isso repudiado.
A economia psíquica coletiva procuraria aqui uma tendência para o menor esforço, sacrificando os grandes desvios de padrão para o nível médio. Sejam estes os de baixo valor, tal como os que ousam movimentar acima desse nível médio. Esta é também uma das grandes críticas de George Orwell ao socialismo, no sentido que nivela a sociedade a partir de baixo. Esta nova imolação das hierarquias da sociedade ocidental e o nivelamento médio, conduziu ao aparecimento de minorias organizadas que se assemelham a novas tribos identitárias que criam pactos entre si para combater os coletivos patrióticos.
A tensão social resultante da transferência de sombras entre diferentes grupos tem fomentado o surgimento de fenómenos como culturas de cancelamento, intolerância, vitimização e radicalismo. Estes sintomas refletem claramente o que Neumann descreveu acerca da não integração da sombra emergente, associada ao sentimento de inferioridade. Tal sentimento demanda compensação por meio de autoafirmação e reação paranoica por parte dos indivíduos reprimidos pela agressão. Manifesta-se, então, um medo paranoico e persecutório que conduz à vitimização, ao politicamente correto e à possessão ideológica.
Em jeito de síntese podemos admitir que a sombra está sempre mesmo atrás de nós e os olhos que não a captam são aqueles que ficam demasiado impressionados com a luz da ideologia, do fanatismo, ou do fundamentalismo. A sombra hoje está patente em todas as polaridades e o mecanismo do bode expiatório não é apenas utilizado pelos coletivos culturais, apesar de isso não desculpabilizar os seus erros. A ideia central no trabalho de Neumann é que a atual sombra não pode ser resolvida pela velha ética, sendo até que paradoxalmente às intenções humanas, foi participante ativa da formação da sua própria sombra.
Concluindo, e apesar dos nossos esforços, Erich Neumann admitia que “nós nascemos com a nossa cota parte de mal para fazer no mundo”. Convém complementar afirmando que, talvez entre esse mal também devemos deixar a nossa cota parte de bem, ou seja, de luz e sombra. Em última instância talvez todos nós tenhamos uma parte arcaica, uma parte frágil e os nossos bodes expiatórios sob os quais devemos trabalhar. É isso que torna toda a análise mais envolvente, porque ambos os lados podem estar tanto do lado da luz da força como do lado da sombra, ao mesmo tempo e em tempos separados. Por isso é que uma vez em conversa com o Phil Zimbardo ele relembrou-me a sua tão mítica frase “os heróis de uns são os terroristas de outros”.
Referências
Jung, C. G. (1968). The Archetypes and the Collective Unconscious. (Collected Works of C.G. Jung, Vol. 9, Part 1). Princeton, NJ: Princeton University Press.
Neumann, E. (1969). Depth psychology and a new ethic. New York: G. P. Putnam’s Sons.
Nietzsche, F. (2007). Genealogia da moral: uma polémica (Trad. Paulo César de Souza). Lisboa: Relógio d’Água.
Slavoj Zizek: https://youtu.be/472lCEy4dBw