Vivemos num país de emigrantes. Vivemos um tempo alimentado, artificialmente, pelo “medo da imigração”, por iniciativa da extrema-direita. Dividir para reinar.

É neste tempo que venho falar da fala em português.

A língua, é elemento fundamental de comunicação, e, através dela, não se aprende só a falar, apreende-se uma cultura, um imaginário.  Contudo, “falar português”, é mais que falar a língua, conjuga essa grande dimensão com a experiência aumentada pela vivência do quotidiano e da interação pessoal e social – a partilha de histórias, de valores, de experiências.

Países há em que “falar a mesma língua” implica, necessariamente, uma fala para lá da língua, e onde a partilha de histórias, valores e experiências se torna mais premente – veja-se casos como a Espanha, a Suíça, a Bélgica, a Índia, a China, países multilinguísticos.

Hoje, quando, por diversas razões, aumenta a fragmentação social, o que significa criar comunidade em dado contexto nacional?

No caso português, a comunidade nacional é compósita.

Por um lado, temos uma “comunidade nacional estendida” – os portugueses no mundo. Portugal, já o disse, é uma nação de emigrantes. Os portugueses de muitas gerações e os seus descendentes fazem ou podem fazer parte do falar português? O que liga um português que está na Venezuela e outro que vive na África do Sul, com quem está no Japão, na Arábia Saudita, em França ou nos Países Baixos? O que liga as gerações mais velhas e as gerações mais novas na diáspora? Os emigrantes dos anos 60 e aqueles que deixaram Portugal nos últimos anos?

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Como o território nacional de origem, esta casa multissecular, se faz casa comum?

A “comunidade nacional estendida” conta com outra camada: os que se ligam por uma história que passa pela América do Sul, por África, pela Ásia e Oceânia. As vinculações são mais ou menos fortes, de Goa a Macau e Timor, de Cabo Verde ao Brasil, de Angola ao Uruguai, de Moçambique, Guiné Bissau, São Tomé e Príncipe a Marrocos.

Como falar das ligações que vão para lá da língua, ou do português das muitas paragens, entre um passado colonial e de circulação e vinculações contemporâneas, que vão da música à gastronomia, da dança ao património construído, da literatura à política, do teatro à economia?

Hoje, para perceber o quadro da fala comum, temos de acrescentar mais estratos: os imigrantes, os residentes de segunda casa e os turistas.

Os imigrantes, uma realidade que se impôs nas últimas décadas e que enriquece a multiculturalidade no quadro nacional. Mais de 140 nacionalidades vivem em Portugal. A multiculturalidade, idealmente, deve tender para a interculturalidade, que procura ir para lá do diálogo cultural e da troca cultural, promovendo o encontro e a coesão, na diversidade. Claro que os imigrantes, a par dos emigrantes, também fazem ou podem fazer parte de comunidades nacionais estendidas, relativamente aos seus países de proveniência.

Nesses termos, que articulações para as suas pertenças, afetos e dinâmicas de interação? Que fazer para evitar guetos e tornar a diversidade cultural uma riqueza comum? Qual a promoção possível, ao mesmo tempo, da diversidade e da inclusão? Que medidas para evitar uma ideia de “unicidade cultural” face a uma ideia (ultrapassada) de assimilação identitária, para garantir uma coesão em torno de valores comuns, que distinguem a comunidade nacional? O quanto é importante essa distinção no quadro de uma ideia contemporânea de Estado, de concerto entre nações e de relações internacionais? E no âmbito da segurança territorial e de defesa de valores comuns? Quais os instrumentos para combater um discurso primário anti-imigração como aquele que hoje nos assola, num país como o nosso, de emigrantes, evitando este paradoxo de ir para fora e querer ser bem recebido e haver quem não queira bem receber?

Que parâmetros devem ser estabelecidos para melhorar a imigração legal e para melhor combater a imigração ilegal e o tráfico de seres humanos?

São muitas perguntas, bem sei.

Outra categoria a considerar (e a adicionar) na fala do português, são os residentes não habituais. Aqueles que aqui veem passar a sua velhice, ou têm condições materiais para aqui viver parte do ano.

Também os nómadas digitais, são elemento a acrescentar à estrutura populacional, cada vez mais presente.

Assim como os turistas estrangeiros regulares, que fazem de Portugal um lugar de pertença, que está no seu imaginário e no seu ritmo de vida, que aqui voltam, anualmente.

A categoria de refugiado ou vítimas de guerras é mais limitada no nosso país, mas existe, também.

Continuando a perguntar, como “falam português” os imigrantes, os residentes não habituais, os turistas habituais, os refugiados?

Portugal exige o domínio da língua portuguesa para casos de aquisição de nacionalidade por naturalização ou para atribuir o estatuto de residência permanente.

Sabe-se que, amiúde, esta exigência é um pró-forma, e que o controlo do domínio da língua (exames) é baixo. Há que melhorar este procedimento, se se considerar que no “falar português”, a efetiva fala e escrita da língua são parte relevante.

No “falar português” faz sentido estar integrado o conhecimento da História, da Cultura, dos Valores?

E se sim, que História, que Cultura, que Valores? Que partilha com imigrantes, não residentes, turistas, refugiados, destes elementos comuns?

Como fazer deles parte da “comunidade nacional estendida”?

Num mundo em que as línguas do comércio internacional online, do gaming, dos influencers e da circulação de pessoas e bens diluem o sentido do falar uma língua nacional, ou, pelo menos, o transformam e, eventualmente, o erodem, não é antagónico ter uma fala nacional. É possível (e desejável) ter uma língua, uma fala nacional, e ser um cidadão cosmopolita.

Aliás, será possível ser do mundo sem ter um ponto de origem, um quadro cultural próprio que permita compreender a diversidade e retirar dela conhecimento e dela fazer parte?

Hoje, no “falar português”, há uma outra característica que gera apetência por Portugal – a capacidade de muitos portugueses falarem outras línguas, nomeadamente, o Inglês.

O “dom das línguas”, assim, integra-se no quadro atual da culturalidade portuguesa.

Como se vê, “falar português”, por tudo o que se disse, não precisa de ser um ato de exclusão. Antes pelo contrário, pode ser um enriquecedor ato de inclusão, uma estratégia de presença no território nacional e no mundo.

Uma “comunidade portuguesa estendida”, com partilha de valores comuns e no respeito da diversidade étnica, de credo, de género.

Há muito trabalho a fazer para responder a questões complexas como as referidas no texto.

E, por vezes, se queremos mesmo avançar, melhorar, não devemos ter medo das perguntas. As perguntas fazem parte do trabalho de construção comunitária. Não por via da demagogia de um referendo sobre a imigração, mas através de um trabalho de curto, médio e longo prazo que faça de Portugal, do “falar português”, cada vez mais um projeto de sucesso para todos os que aqui vivem, para todos que aqui se ligam, mesmo se pelo mundo fora.

E que melhor se pode fazer como projeto político, social, económico, cultural, do que construir a casa comum?