Afastada que está a tese, essa sim, disparatada, de que há um plano engendrado ao pormenor pela Escola de Frankfurt para dinamitar a civilização e a cultura ocidentais (imaginar o sofisticadíssimo Theodor W. Adorno, um dos seus mais ilustres membros, a querer apagar a arte europeia, Bach e Beethoven incluídos, é puro surrealismo), talvez valha na mesma a pena tentar perceber os suportes de tal acusação. Isto, claro, além do suporte que lhe é dado por malucos e oportunistas, cujas motivações são fáceis de entender. Já foi referida a preponderância do marxismo nos trabalhos da Escola, a omnipresente dicotomia dominadores/dominados, o desígnio da emancipação. Temos também, de uma forma vincada, a influência de Lukács em Adorno e em Horkheimer (outro destacado membro da Escola e um dos seus primeiros directores), dois pensadores que não viam a cultura como secundária em relação ao modo de produção e às forças económicas, mas sim como um caminho para libertar os trabalhadores da alienação e da escravização inerentes à ordem capitalista, bastando para isso que se colocasse a verdadeira arte no lugar daquilo que consideravam ser meros mecanismos de lavagem cerebral promovidos pelas sociedades de consumo.
De qualquer forma, não obstante o emprego de todos estes argumentos, talvez seja ao “psicomarxista” Herbert Marcuse, mais um dos nomes ligados a Frankfurt e à Teoria Crítica, que a direita recorre com maior frequência quando quer denunciar o “marxismo cultural”. Há uma frase que lhe é atribuída quase diariamente, não sei se bem ou se mal, em que é revelado o modelo do exército revolucionário que deveria substituir o já muito estafado operariado de pele branca, uma classe tão moldada pelo conservadorismo que deixara de se mostrar permeável à doutrinação por radicais de esquerda. Teria de ser, assim, uma “coligação de negros, estudantes, feministas e homossexuais” a fazer avançar, mesmo que à força, a História em direcção ao paraíso.
Ainda que a frase entre aspas possa ser apócrifa, não há dúvida de que Marcuse se interessava muito pelos movimentos estudantis, pelas subculturas, pelas minorias marginalizadas e pelos activistas mais radicais, um interesse que era de tal forma correspondido que um dos slogans grafitados em 1968 pelas ruas de Paris, lado a lado com o anárquico “il est interdit d’interdire!” e com o calceteiro-poético “sous les pavés, la plage”, era o curioso “3M”, relativo a Marx, a Mao e a Marcuse. Também Angela Davis, ícone de todos os activismos, fez questão de repetir várias vezes tudo o que devia a este seu antigo professor universitário. E parece que o Ku Klux Klan, num registo diferente, lhe chegou a enviar umas simpáticas cartas sobre os potenciais riscos da actividade excessiva para a sua própria saúde. Enfim, Herbert Marcuse teve uma vida interessante, passada a escrever livros de difícil leitura e a alimentar mitos e histórias rocambolescas (numa delas conta-se que liderou, com mais de 70 anos, a invasão do edifício da administração da sua própria Universidade. No final, mostrando respeito pela propriedade alheia, pagou anonimamente do seu bolso a porta arrombada pelos estudantes que o seguiam – tinha sido necessário deitá-la abaixo, era agora necessário repará-la). Mas nada liga tanto a sua figura às polémicas actuais como o ensaio “Tolerância Repressiva”, um texto com mais de 50 anos, que virou, mesmo que inconscientemente, manual de instruções do presente radicalismo.
Enquanto Adorno, no seu pessimismo algo resignado, lamentava a mistificação das massas através da cultura pop e consumista do capitalismo, Marcuse, mais prático e optimista, apresentava soluções para libertar a consciência dos “oprimidos” das ideias dominantes dos “opressores”. A sociedade – dizia ele –, ao tolerar o debate de todas as ideias e a liberdade de expressão, estava apenas a manter o statu quo conservador, que reprime as alternativas progressistas. Para que a “verdadeira liberdade” tivesse alguma hipótese de substituir a liberdade ilusória da democracia burguesa, era necessário que as ideias progressistas fossem alvo de discriminação positiva, e que as ideias reaccionárias, assim como as conservadoras, levassem com a marreta da censura. E como a lei e a ordem estão sempre do lado da “hierarquia estabelecida”, Marcuse aceita que pode ser necessário que os oprimidos e as minorias, à margem dessa lei e dessa ordem, utilizem uma marreta a sério na cabeça dos opressores.
É importante salientar que este ensaio, publicado em 1965, não foi escrito em nenhum país sob governação de um qualquer déspota ultraconservador. Marcuse estava a falar a partir dos Estados Unidos, para onde foi viver quando teve de fugir do nazismo, e sobre os Estados Unidos, uma democracia liberal que era até, à época, liderada por um Presidente democrata. Além disso, sobre as ideias e opiniões a censurar, não se pense que este filósofo se referia unicamente ao discurso racista, xenófobo ou homofóbico. E nem sequer a inclusão de anedotas marialvas ou de piropos é suficiente para completar a lista de palavras repressivas a abater. Era necessário que tudo aquilo que impede a emancipação plena do ser humano deixasse de ser tolerado pela sociedade, incluindo até, por exemplo, propostas políticas que se opusessem à extensão dos serviços públicos, da segurança social ou dos cuidados de saúde prestados pelo Estado. Em resumo: adeus, pluralismo; olá, ditadura progressista e pensamento único socialista.
António Guerreiro, tentando descredibilizar os que se encarniçam contra o “marxismo cultural” (muitos merecem esse tratamento, sem dúvida), refere que um dos alvos favoritos desse ataque, Michel Foucault, nem sequer era marxista e mantinha uma respeitável distância em relação ao “cultural”. Julgo que a segunda parte da afirmação, se consideramos a palavra cultura em sentido lato (não apenas como sinónimo de Artes e Letras, mas abrangendo também as mentalidades, os costumes, as crenças, os valores, etc.), é muito discutível, mas a primeira não oferece, de facto, grandes objecções. E sobre Marcuse poderá ser dito algo semelhante. Afinal, não foi ele duramente criticado por diversos comunistas aquando da publicação de “Marxismo Soviético”, um livro profundamente crítico do regime de Moscovo?
Talvez seja interessante, no âmbito desta contenda semântica, revisitarmos um conceito que se tornou famoso, nem sempre pelos melhores motivos, nos agitados anos 60: a “leitura sintomática” de Marx. O historiador Tony Judt, que não gostava do exercício, descrevia-o como uma construção intelectual levada a cabo por admiradores de Marx, que consistia em cortar o pensamento do mestre em pedacinhos, aproveitar tudo o que fosse útil às causas do momento, e ignorar tudo o que se mostrasse inconveniente. Claro que o resultado deste “faça você mesmo” ideológico era um marxismo abastardado, mas os seus autores viam-se como marxistas e declaravam-se, orgulhosamente, seguidores do famoso barbudo. Será então de excluir, no debate sobre o “marxismo cultural”, a auto-identificação de muitos dos seus operacionais? Pacheco Pereira talvez ache que sim, pois refere com algum paternalismo que a esquerda, na sua globalidade, “é cada vez menos marxista, mas ainda não deu por ela”, uma frase que ecoa ao “radicalismo pequeno-burguês de fachada socialista” que Álvaro Cunhal denunciou nos anos 70.
Estamos, assim, na presença de um fenómeno curioso: André Ventura jura todos os dias a pés juntos que não é fascista nem racista, e variadíssimos estudiosos respondem que não podemos acreditar no que ele diz; em simultâneo, numerosos activistas das mais diversas causas declaram-se marxistas empenhados, e novamente variadíssimos estudiosos, muitas vezes os mesmos, respondem que eles acham que são, mas, na realidade, não são marxistas coisíssima nenhuma.
É certo que Michel Foucault, para regressarmos ao fluente e influente pensador francês, não deve ser encaixado nesta categoria. Nunca se auto-identificou como partidário de Marx e é puxado para as “guerras culturais” da actualidade por causa dos seus temas de eleição, bastante alinhados (influência directa? Influência indirecta?) com a forma de pensar do presente activismo. Foucault dedicou-se a revelar as máscaras que disfarçam a preponderância, a identificar as múltiplas formas de dominação, a procurar as diferentes estruturas de poder, nomeadamente as ocultas. E não deve haver conceito mais importante para os movimentos feminista, ou LGBT, ou anti-racismo do que o de “estruturas de poder”, principalmente se essas estruturas forem secretas, não visíveis a olho nu. Será, ainda assim, justo colocar todas as pessoas que pertencem a estes movimentos sob o chapéu do “marxismo cultural”, mesmo que entre aspas? Acho que não, mas pelo menos aquelas que fazem, consciente ou inconscientemente, uma “leitura sintomática” de Marx, ou que, carregadas de orgulho, se dizem marxistas, merecem a designação (em princípio, no caso português, estaremos mais a falar de eleitores do Bloco de Esquerda do que do PCP ou de outros partidos, mas não deixa de ser um facto que – acertadamente ou não, queira Pacheco Pereira ou não – o BE também se reclama herdeiro do marxismo). E essa designação não pretende ser nenhum insulto; deveria até ser vista, pela maioria dos envolvidos, como um elogio.
Quais são então os “pedacinhos de Marx”, para utilizarmos as palavras de Tony Judt, que estão na moda nas “guerras culturais” de 2020? Vários, merecendo destaque a divisão permanente do mundo em dois blocos supostamente homogéneos, o dos opressores e o dos oprimidos (em termos socioeconómicos – burguesia e proletariado – na época de Marx, em termos socioculturais agora); a impossibilidade de concertação e diálogo civilizado entre esses dois contrários; o fervor revolucionário e subversivo; a luta como solução, como projecto de vida e como único mecanismo de progresso histórico (“lutar” foi a resposta que Marx deu quando lhe pediram, num jogo de salão, a definição de “felicidade”); a luta violenta como hipótese aceitável e necessária na caminhada para um futuro justo e radioso; a tendência para ver todos os problemas como “estruturais” (logo, não basta reformar, arranjar ou melhorar o que existe, é preciso demolir tudo e fazer de novo); a tese de que os opressores conseguem introduzir as suas ideias na cabeça dos oprimidos, dificultando ou impossibilitando a “consciência de classe” (nestes casos não existem classes, mas o raciocínio é semelhante); a necessidade de organizações que enquadrem os oprimidos, que promovam e direccionem os conflitos, que fortaleçam a consciência do colectivo; e, por fim, a omnipresença do capitalismo em todas as análises e lutas (seja uma manifestação contra o racismo, contra o machismo, contra o aquecimento global, ou contra a matança do porco em Boticas, metade dos cartazes apresentados vão denunciar o “capitalismo que mata” e apelar ao seu derrube).
Se somarmos a esta receita os ingredientes de origem maoísta (a Revolução Cultural chinesa pretendia esmagar as “Quatro Velharias” – ideias, costumes, hábitos e tradições), marcuseana e gramsciana, inclusive “a longa marcha através das instituições” (que o líder estudantil alemão Rudi Dutschke, influenciado pelo pensamento do filósofo italiano, idealizou para subverter as sociedades ocidentais a partir da infiltração sistemática de elementos radicais na imprensa, nas escolas, nas fundações, nas universidades, etc.), ficamos já com um bom retrato do “marxismo cultural”. Em relação ao Marxismo Cultural sem aspas, ou seja, o conceito academicamente respeitável e utilizado há quase 50 anos por distintos estudiosos, muitos deles de esquerda, deixo alguns nomes que os mais curiosos e interessados neste tema poderão pesquisar facilmente através do Google: Richard R. Weiner, Dennis Dworkin, Ioan Davies, Douglas Kellner e Trent Schroyer, de quem já falamos. Sobre uma “coisa” que dizem não existir, já me parecem leituras suficientes.
Posto isto, que fazer? Refiro-me a quem não gosta de marxismo, claro, em nenhuma das suas versões; quem gosta, julgo eu, não deve precisar dos meus conselhos para nada. Parece ter chegado a Portugal, nos últimos meses, a tendência da “contra-revolução” musculada: uma resposta mais colectivista, mais radical, mais maniqueísta, mais barulhenta e mais identitária contra o colectivismo, o radicalismo, o maniqueísmo, o barulho e o identitarismo do “marxismo cultural”. Fogo contra fogo em vez de água contra fogo. Talvez renda votos, as sondagens dizem-nos que sim, mas é duvidoso que esta espécie meia tosca de “gramscianismo de direita” seja a forma mais eficaz de apagar o incêndio. E também é duvidoso que seja este, e não o económico, o problema mais grave do país. O fenómeno, como vimos, é tudo menos uma novidade, e a ordem tradicional do Ocidente, com a sua “família nuclear burguesa” e a sua economia de mercado, tem mostrado alguma capacidade de resistência e até de absorção dos “inimigos”. Mesmo que toda a direita cruzasse os braços, dois terços dos “marxistas culturais” actualmente em actividade estariam convertidos ao sossego burguês antes de festejarem o 30.º aniversário. Mas o meu conselho não é que se cruzem os braços. Charles de Gaulle, nos anos 60, também não o fez. No entanto, perante uma situação que era verdadeira e perigosamente pré-revolucionária e uma elite cultural, essa sim, hegemonicamente de esquerda, não se pôs aos gritos histéricos contra o “marxismo cultural” ou – mais adequado à época – contra o “ópio dos intelectuais”. Estabeleceu uma estratégia pragmática – “reformas, sim; bagunça, não” – e, entre um acordo laboral, um discurso à nação e umas eleições antecipadas, resolveu o assunto. As consequências de longo prazo do Maio de 68 não são consensuais: há quem saliente as conquistas emancipatórias e de “costumes” e quem prefira realçar o jeito que essas conquistas, paradoxalmente, acabaram por dar ao desenvolvimento do capitalismo. Mas uma coisa é certa: no momento decisivo, os trabalhadores regressaram aos seus empregos e os estudantes foram gozar as férias de Verão. Menos bagunça era difícil. Chapeau!, general.