O Estado tem deveres particulares de protecção dos cidadãos mais frágeis. Não é difícil entender o porquê: os que vivem em situações de vulnerabilidade (social, económica, educativa) são os que têm menos meios próprios e que, por isso, mais dependem do apoio do Estado e de bons serviços públicos para satisfazer as suas necessidades de saúde, de educação ou de subsistência. Se esta evidência tem sido discutida recentemente nos casos da Saúde e da Educação, nada é mais revelador de um Estado que falha do que a situação de irrelevância a que foram remetidas as pessoas com deficiência — os mais vulneráveis entre os vulneráveis.

A 22 de Julho de 2021, a Estratégia Nacional para a Inclusão das Pessoas com Deficiência (ENIPD) 2021-2025 foi aprovada em Conselho de Ministros, para entrar em vigor a 1 de Setembro. Nas palavras da Secretária de Estado da Inclusão, Ana Sofia Antunes, esse era um sinal de que o governo estava “em cima dos acontecimentos”, mobilizado para trabalhar em prol desta população vulnerável.

Ora, precisamente um ano depois, o balanço da implementação das medidas é extremamente negativo, como constatou o Jornal de Notícias, num trabalho do jornalista Delfim Machado. Das 170 medidas a implementar até 2025, cerca de 70 deveriam ter sido concluídas ou iniciadas em 2021, mas muito pouco aconteceu. As barreiras arquitectónicas permanecem por eliminar — havia a meta de parcerias com 30 municípios, mas só se assinou um protocolo no mês passado. Os guias para a prevenção da violência deveriam ter sido publicados — mas não existem. Nos acessos a museus e monumentos, havia o compromisso de 20 planos de acessibilidade realizados — e também se falhou. A criação de 30 equipas de apoio à transição entre a escolaridade obrigatória e a vida pós-escolaridade também estava prevista — e também se ficou pelo papel. Um diagnóstico sobre a empregabilidade das pessoas com deficiência deveria ter sido efectuado — mas não foi feito.

Por falar em empregabilidade: o desemprego das pessoas com deficiência atingiu o número mais elevado dos últimos 10 anos, tendo aumentado 30% neste período. Enquanto faltam oportunidades no sector privado, é na administração pública que muitos encontram colocação — e, aí, os aumentos têm sido relevantes: +8,2% entre 2020 e 2021. Mas é também na administração do Estado onde se observam as maiores perversões. Na medida em que a lei obriga a que, por cada concurso de três vagas, haja uma vaga para pessoas com deficiência, há entidades do Estado a abrir três concursos individuais, para assim ladear a obrigatoriedade legal.

O governo inventa desculpas: o Ministério da Segurança Social justifica-se com o carácter inovador de muitas destas medidas, que dificultou a sua implementação. Quem está no terreno tem uma explicação mais plausível: não houve verbas orçamentais atribuídas e, como tal, não houve trabalho. Será que é agora, em 2022, que tudo vai correr bem? Os sinais são negativos, a começar pela ausência de reuniões de trabalho: a Comissão de Políticas de Inclusão das Pessoas com Deficiência, presidida pela Secretária de Estado da Inclusão, ainda não reuniu em 2022, nem emitiu (como é da sua responsabilidade) pareceres acerca da monitorização do ENIPD. De resto, os truques das entidades públicas para fugir à contratação de pessoas com deficiência haviam sido criticados pela Secretária de Estado, em 2018, com a declaração de vontade de alterar a lei — mas, quatro anos depois, ainda não foi alterada.

Este é o retrato de uma indignidade: um governo que enfeita discursos com medidas para a inclusão, mas que falha clamorosamente nos seus compromissos e que autoriza subterfúgios para as entidades públicas fugirem às suas responsabilidades de contratação. Eis um governo que perdeu a noção das prioridades. São situações como esta, em que os mais vulneráveis ficam continuamente para trás, que justificam um levantamento social. E, na sua ausência, somos atropelados por um triste diagnóstico: uma sociedade que não reage a tal indignidade é uma sociedade dormente, pouco exigente, que merece a decadência em que caiu.

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