A confissão do Secretário-Geral do Partido Comunista Português (P.C.P.) de que a nomeação do seu sucessor causou «alguma surpresa no Comité Central», apesar de se ter «iniciado e concluído a devida auscultação» e de ser verificado «uma convergência em relação à solução», contém alguns problemas. Todo e qualquer partido comunista assenta no pressuposto de que o partido é a verdade. Não se trata nunca de uma relação exterior com a verdade, relação essa em que, por princípio, tudo pode ser discutido, da definição do seu próprio conteúdo ou das suas condições de possibilidade, até à eventual não existência de nenhuma verdade e, cúmulo da exterioridade, à interrogação radical: se houvesse verdade, seria desejável conhecê-la? Todas estas questões põem-se no horizonte cultural instaurado pela ciência moderna, que impregna todo o modo de pensar posterior, seja ele de concordância, de refutação ou de superação.

O marxismo, rebento hegeliano, encontra-se neste último caso. Significa isso que o elemento decisivo é a consideração da totalidade integradora dos resultados científicos parciais. Do ponto de vista político-partidário, essa consideração traduz-se num modo de presença dessa perspectiva integradora total difusa em todos os membros desse corpus mysticum moderno que é o partido. As diferentes partes do organismo são animadas pelo mesmo fim e para ele contribuem segundo a sua especialização funcional. Por outras palavras, a homogeneidade da substância doutrinal não exclui a diferenciação, a heterogeneidade dos órgãos. Bem pelo contrário, exige-a na sua diligência integradora.

No Partido, como no corpo vivo, o critério da hierarquia é o da consciência, inexistente para si no grau inferior até à sua plenitude no cume, no secretário geral – a cabeça do corpo, o egocrata na União Soviética. Muito perto desta, o Comité Central do partido, com a sua Comissão Política de permeio, não vivendo a experiência gozosa do saber absoluto, desempenha um papel essencial, uma vez que é do seu seio (artigo 35.º dos Estatutos do P.C.P) que sairá o futuro Secretário-Geral. Por isso, a relação entre os diversos órgãos, incluindo aqui os simpatizantes, baseia-se, usando um conceito teológico, na fides implicita. A crença no princípio geral, no caso vertente, o marxismo-leninismo, legitima toda a actividade específica desses órgãos. Legitima e, mais importante, deriva-a logicamente. Um tal poder lógico autonomizado exclui necessariamente a surpresa, mesmo na periferia do partido, quanto mais no seu coração, o Comité Central, que sintetiza representação e representatividade.

A lógica do discurso ideológico, que opera em circuito fechado, imunizando-o contra qualquer experiência exterior, é estilhaçada pela afirmação de que o Comité Central ficou surpreendido com a decisão do Secretário-Geral, e mais ainda pela corroboração dessa surpresa por um elemento desse mesmo Comité. Depois dos magros resultados eleitorais e sem o querer, Jerónimo de Sousa levou a cabo na prática o haraquiri teórico do P.C.P. Nesse sentido, a questão da influência futura do P.C.P. na sociedade portuguesa talvez se resolva a breve trecho. Privadas do referencial mítico compacto, as células comunistas poder-se-ão agitar num primeiro momento, por efeito de inércia, mas, provavelmente, não sobreviverão mais tempo do que aquele em se faça sentir esse efeito. Por sua vez, o sucessor, Paulo Raimundo, faz saber que o comunismo é «o mais belo projeto que a humanidade conhece»; com a aplicação de um critério estético à política, uma tradição antiga e sinistra à esquerda e à direita – o kitsch sempre se entendeu bem demais com a crueldade –, confirma o suicídio e lavra a certidão de óbito. Nada há a lamentar.

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